terça-feira, 17 de março de 2009

CAPÍTULO 03 AO 05

Capítulo III
ESTA VIDA
NÃO É
SENÃO UMA PREPARAÇÃO
PARA A VIDA ETERNA

Testemunhos desta verdade
1. Que esta vida, uma vez que tende para outra, não é vida (falando com rigor), mas um proêmio da vida verdadeira e que durará para sempre, tornar-se-á evidente, primeiro, pelo testemunho de nós mesmos; segundo, pelo testemunho do mundo; e, finalmente, pelo testemunho da Sagrada Escritura.
1. Pelo testemunho de nós mesmos.
2. Se lançarmos um olhar introspectivo sobre nós mesmos, veremos que todas as coisas da nossa vida procedem de tal modo gradualmente, que a antecedente prepara o caminho para a seguinte. Por exemplo: a nossa primeira vida desenvolve-se nas vísceras maternas. Mas em proveito de quem? Acaso em proveito de si mesma? De modo algum. Trata-se apenas de formar convenientemente um pequenino corpo para servir de habitação e de instrumento à alma, para comodidade e uso da vida seguinte, a qual vivemos à luz do sol. E apenas aquele pequenino corpo está perfeito, somos dados à luz, pois já não há nenhuma razão para que continui naquelas trevas. Do mesmo modo, portanto, esta vida que vivemos à luz do sol não é senão uma preparação para a vida eterna, de tal maneira que não é de admirar que a alma se sirva do corpo para conseguir aquelas coisas que lhe serão úteis para a vida futura. Apenas feitos estes preparativos, emigramos daqui, porque nada mais temos aqui a fazer. É verdade que alguns, antes que tenham feito esses preparativos, são arrebatados, ou antes, lançados no seio da morte, do mesmo modo que, nos casos de aborto, o feto é lançado fora do útero, não para o seio da vida, mas para o seio da morte; em ambos os casos, porém, isso acontece, é certo que com a permissão de Deus, mas contudo, por culpa dos homens.
2. O mundo visível foi criado somente para servir de sementeira, de alimentador e de escola aos homens.
3. Também o mundo visível, de qualquer parte que se olhe, atesta que não foi criado para outro fim senão para servir para a multiplicação, para a alimentação e para a educação do gênero humano.
Com efeito, uma vez que a Deus não aprouve criar os homens todos juntos, no mesmo momento, como fez com os anjos, mas produziu apenas um macho e uma fêmea, dando-lhes, a fim de que, por via de geração, se multiplicassem, as forças necessárias e a sua benção, foi preciso conceder um espaço de tempo necessário para esta sucessiva multiplicação, pelo que foram concedidos alguns milhares de anos. E para que esse tempo não fosse um tempo de confusão, de surdez e de cegueira, fez a extensão dos céus, guarnecidos com o sol, a lua e as estrelas, e ordenou que estes astros, com as suas revoluções, servissem para medir as horas, os dias, os meses e os anos. A seguir, uma vez que o homem seria uma criatura corpórea, com necessidade de um lugar para habitar, de um espaço para respirar e para se mover, de alimento para crescer e de vestidos para se adornar, fez (na parte mais baixa do mundo) um pavimento sólido, a terra: e circundou-a de ar e banhou-a com as águas, e ordenou-lhe que produzisse plantas e animais multiformes, não apenas para satisfazer as necessidades do homem, mas também para seu deleite. E, uma vez que formara o homem à sua imagem, dotado de inteligência, para que também não faltasse à inteligência o seu alimento, derivou de cada uma das criaturas muitas e várias espécies, para que este mundo visível aparecesse como um lucidíssimo espelho da infinita potência, sabedoria e bondade de Deus, na contemplação do qual o homem fosse arrebatado por um sentimento de admiração pelo Criador e impelido a conhecê-lo e movido a amá-lo. Efetivamente, a solidez, a beleza e a doçura do Criador permanece invisível e escondida no abismo da eternidade, mas por toda a parte brilha por meio das coisas visíveis e presta-se a ser apalpada, observada e saboreada. Portanto, este mundo nada mais é que a nossa sementeira, o nosso alimentador e a nossa escola. Deve, por isso, existir um mais além («Plus ultra»), onde, uma vez saídos das aulas desta escola, nos matricularemos na Academia Eterna. Pela razão, portanto, consta que as coisas se passam assim; mas é ainda mais evidente pelas Sagradas Escrituras.
3. O próprio Deus o atesta com as suas palavras.
4. O próprio Deus afirma, pela boca de Oséias, que os céus existem por causa da terra, a terra por causa do trigo, do vinho e do azeite, e tudo isto por causa dos homens (Oseias, 2,22). Tudo, portanto, existe por causa do homem, até o próprio tempo. Com efeito, não será concedida ao mundo uma duração mais longa que a necessária para completar o número dos eleitos (Apocalipse, 6, 11). Apenas este número esteja completo, os céus e a terra desaparecerão e não se encontrará mais lugar para eles (Apocalipse, 20,7), pois surgirá um novo céu e uma nova terra, onde habitará a justiça (Apocalipse, 21,1 e 2; Pedro, II, 3, 18). Finalmente, até os nomes que as Sagradas Escrituras dão a esta vida dão a entender que esta não é senão uma preparação para outra. Com efeito, dão-lhe o nome de via, viagem, porta, espera; e a nós, o nome de peregrinos, forasteiros, inquilinos, aspirantes a uma outra cidadania, a qual será verdadeiramente permanente (Gênesis, 47,9; Salmo 29, 13; Job, 7, 12; Lucas, 12, 36).
A experiência.
5. Todas estas coisas são demonstradas pelos próprios fatos e pela condição de todos os homens, o que é colocado sob os olhos de todos nós. Com efeito, quem de todos os que nasceram, depois que apareceu no mundo, não desapareceu de novo? Precisamente porque somos destinados à eternidade. Porque, portanto, pertencemos à eternidade, é necessário que esta vida seja apenas uma passagem. Por isso Cristo disse: «Estai preparados, porque não sabeis em que hora virá o Filho do homem» (Mateus, 24, 44). E é esta a razão (sabemo-lo também pela Escritura) por que Deus chama deste mundo alguns ainda na primeira idade da vida: chama-os certamente quando os vê preparados como Enoc (Gênesis, 4, 24; Sabedoria, 4, 14). Porque é que, ao contrário, usa de longanimidade para com os maus? Sem dúvida, porque não quer surpreender ninguém não preparado, mas que todos se convertam (Pedro II, 3, 9). Se, todavia, algum continua a abusar da paciência de Deus, este ordena que seja arrebatado pela morte.
Conclusão.
6. Portanto, assim como é certo que a estadia no útero materno é uma preparação para viver no corpo, assim também é certo que a estadia no corpo é uma preparação para aquela vida que será uma continuação da vida presente e durará eternamente. Feliz aquele que sai do útero materno com os membros bem formados! Mil vezes mais feliz aquele que sair desta vida com a alma bem limpa!

Capítulo IV
OS GRAUS
DA PREPARAÇÃO
PARA A ETERNIDADE
SÃO TRÊS:
CONHECER-SE A SI MESMO
(E CONSIGO TODAS AS COISAS),
GOVERNAR-SE
E DIRIGIR-SE PARA DEUS

De onde se adquire o conhecimento dos fins secundários do homem, subordinados ao fim supremo (a eternidade)?
1. É evidente, portanto, que o fim último do homem é a beatitude eterna com Deus. Quais sejam os fim subordinados àquele e conformes a esta vida transitória, torna-se evidente pelas palavras com que Deus manifestou a resolução de criar o homem: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e às aves do céu, e aos animais selváticos, e a toda a terra, e a todos os répteis que se movem sobre a terra» (Gênesis, 1, 26).
São três:
1. que conheça todas as coisas;
2. que seja rei de si mesmo;
3. que seja delícia de Deus.
2. Ora, desta passagem, torna-se evidente que foi colocado entre as criaturas visíveis para que seja:

I. Criatura racional.
II. Criatura senhora das outras criaturas
III. Criatura imagem e delícia do seu Criador

Estas três coisas estão de tal modo ligadas que não pode admitir-se nenhum divórcio entre elas, porque sobre elas se funda a base da vida presente e da futura.
Que significa que é criatura racional?
3. Que é criatura racional quer dizer que observa, dá o nome e se apercebe de todas as coisas, isto é, que pode conhecer e dar um nome a todas as coisas deste mundo e entendê-las, como é evidente (Gênesis, 2, 19). Ou então, segundo a enumeração de Salomão (Sabedoria, 7, 17 e ss.): conhecer a constituição do mundo e a força dos elementos, o princípio e o fim e o meio das estações, as mudanças dos solstícios e a variabilidade do tempo, a duração do ano e a posição das estrelas, a natureza dos animais e a alma dos brutos, as forças dos espíritos e os pensamentos dos homens, as diferenças das plantas e a potência das suas raízes: numa palavra, todas as coisas ocultas ou manifestas, etc. Nisto está compreendido também a ciência dos artífices e a arte da palavra; de tal maneira que (como diz o Eclesiástico) em nenhuma coisa, pequena ou grande, haja algo de desconhecido (Eclesiástico, 5, 18). Somente assim, com efeito, poderá de fato conservar o título de animal racional, isto é, se conhecer os fundamentos de todas as coisas.
Que significa que é senhor das outras criaturas?
4. Que é o senhor das outras criaturas quer dizer que, ordenando tudo para fins legítimos, faz reverter tudo utilmente em seu proveito; quer dizer que, portando-se por toda a parte, no meio das criaturas, como um rei, isto é, grave e santamente (ou seja, adorando apenas o Criador acima de si mesmo; os anjos de Deus, seus companheiros, como a si mesmo, e todas as outras coisas menos que a si mesmo) defende a dignidade que lhe é concedida; que não está sujeito a nenhuma criatura, nem mesmo à própria carne e que aproveita de tudo e de tudo se serve livremente; que não ignora onde, quando, como e até que ponto deve obedecer ao corpo, e onde, quando, como e até que ponto deve servir o próximo. Numa palavra, que pode regular prudentemente os movimentos e as ações, externas e internas, de si mesmo e dos outros.
Que significa que é imagem de Deus?
5. Finalmente, que é imagem de Deus, quer dizer que representa ao vivo a perfeição do seu arquétipo, como diz o próprio Arquétipo: «Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou santo» (Levítico, 19, 2).
Os referidos três atributos reduzem-se:
1. à instrução;
2. à virtude;
3. à piedade.
6. Daqui se segue que os autênticos requisitos do homem são: 1. que tenha conhecimento de todas as coisas; 2. que seja capaz de dominar as coisas e a si mesmo; 3. que se dirija a si e todas as coisas para Deus, fonte de tudo. Estas três coisas, se as quisermos exprimir por três palavras vulgarmente conhecidas, serão:

I. Instrução,
II. Virtude, ou seja, honestidade de costumes,
III. Religião, ou seja, piedade;

entendendo-se por instrução, o conhecimento pleno das coisas, das artes e das línguas; por costumes, não apenas a urbanidade exterior, mas a plena formação interior e exterior dos movimentos da alma; e por religião, a veneração interior, pela qual a alma humana se liga e se prende ao Ser supremo.
Estas três coisas são o essencial do homem nesta vida; todas as outras são acessórias .
7. Nestas três coisas reside toda a excelência do homem, porque só estas são o fundamento da vida presente e da futura; as outras (a saúde, a força, a beleza, o poder, a dignidade, a amizade, o sucesso, a longevidade) não são senão acréscimos e ornamentos externos da vida, se acaso Deus os junta a ela, ou vaidades supérfluas, pesos inúteis e estorvos nocivos, se alguém, desejando-os apaixonadamente, os vai procurar, e, descuradas as coisas mais importantes, deles se ocupa e neles se mergulha.
Ilustra-se isto com o exemplo:
1. do relógio.
8. Ilustro a minha afirmação com exemplos. O relógio (solar ou mecânico) é um instrumento elegante e muito necessário para medir o tempo, cuja substância ou essência é constituída por uma correspondência perfeita de todas as suas partes. Os estojos em que se coloca, as esculturas, as pinturas e os dourados são coisas acessórias que acrescentam qualquer coisa à sua beleza, mas nada à sua bondade. Se alguém quiser um instrumento destes de preferência belo a bom, será escarnecida a sua puerilidade, pois não repara onde está sobretudo a utilidade.
2. do cavalo.
Do mesmo modo, o valor de um cavalo está na sua força junta com a magnanimidade ou agilidade e a prontidão do voltear; a cauda solta ou atada, a crina penteada e ereta, os freios dourados, a gualdrapa com bordados de ouro, e os colares, sejam de que espécie forem, é verdade que acrescentam ornamento, mas, se víssemos alguém medir por estas coisas a excelência do cavalo, chamar-lhe-íamos estúpido.
3. da saúde
Finalmente, o bom estado da nossa saúde depende de uma digestão regular e de uma boa disposição interior. Deitar-se em leitos moles, trazer vestidos luxuosos e comer alimentos saborosos, não só não favorece a saúde, mas até a prejudica; por isso, quem procura coisas deleitáveis de preferência a coisas sãs, é um insensato. E é um insensato infinitamente mais prejudicial aquele que, desejando ser homem, se preocupa mais com os ornamentos que com a essência do homem. Por isso, o Sábio chama ímpio e estulto «a quem julga que a nossa vida é coisa de burla e um mercado lucrativo» e diz e repete que «a aprovação e a benção de Deus está muito longe de semelhante homem» (Sabedoria, 15, 12 e 19).
Conclusão.
9. Fique, portanto, assente isto: quanto maior é a atividade que, nesta vida se despende por amor da instrução, da virtude e da piedade, tanto mais nos aproximamos do fim último. Por isso, sejam estas três coisas a obra essencial da nossa vida ; tudo o resto é acessório, empecilho, aparência enganosa.

Capítulo V
AS SEMENTES
DAQUELAS TRÊS COISAS
(DA INSTRUÇÃO, DA MORAL E DA RELIGIÃO)
SÃO POSTAS
DENTRO DE NÓS
PELA NATUREZA

A primitiva natureza do homem era boa: a ela (libertando-nos da corrupção) devemos regressar.
1. Neste lugar, por natureza, entendemos, não a corrupção que, depois da queda, a todos atingiu (e por causa da qual somos chamados, por natureza, filhos da ira [1], incapazes, por nós próprios, de pensar seja o que for de bom), mas o nosso estado primitivo e fundamental, ao qual devemos regressar como nosso princípio. Neste sentido, Luís de Vives disse: «Que outra coisa é o cristão senão o homem regressado à sua natureza e restituído, por assim dizer, à sua origem, de onde o demônio o havia afastado?» (Da Concórdia e da Discórdia, livro I) [2]. Neste sentido também pode tomar-se aquilo que Sêneca escreveu: «A sabedoria está em regressar à natureza e em voltar àquele lugar de onde o erro público (ou seja, o erro cometido pelo gênero humano através dos primeiros pais) [3] nos expulsou». E diz ainda: «O homem não é bom, mas, lembrando-se da sua origem, transforma-se em bom, para que tenda a igualar Deus. Desonestamente, ninguém consegue subir ao lugar de onde descera» (Carta 93) [4].
A força proveniente da providência eterna impele para o estado primitivo.
2. Entendemos também pela palavra natureza a providência universal de Deus, ou seja, o influxo incessante da bondade divina para operar tudo em todos, ou seja, em cada criatura aquilo para que a destinou. Na verdade, o objetivo da sabedoria divina foi nada fazer em vão, isto é, nem sem qualquer finalidade, nem sem os meios adequados para conseguir esse fim. Por conseqüência, tudo o que existe, existe para qualquer fim, e para que o possa atingir foi dotado dos necessários orgãos e auxílios; mais ainda, foi dotado também de uma verdadeira tendência, a fim de que nunca seja impelido para o seu fim contra a sua vontade e com relutância, mas antes com prontidão e com prazer pelo instinto da própria natureza, de modo que, se disso é mantido afastado, advenha o sofrimento e a morte. É certo, por isso, que também o homem foi feito, por natureza, apto para a inteligência das coisas, para a harmonia dos costumes e para o amor a Deus sobre todas as coisas (vimos já, com efeito, que foi destinado para estas coisas), e é tão certo que as raízes daquelas três coisas se encontram nele, quanto é certo que a cada planta foram dadas as raízes sob a terra.
A sabedoria colocou no homem raízes eternas.
3. Para que se torne mais evidente o que pretende dizer o Eclesiástico quando proclama que a sabedoria colocou fundamentos eternos nos homens (Eclesiástico, 1, 14), vejamos que fundamentos de Sabedoria, de Virtude e de Religião foram postos em nós, para que nos apercebamos quão maravilhoso organismo de sabedoria é o homem.
I. Tornando-o apto para adquirir conhecimento das coisas. O que é evidente, porque o fez:
1. sua imagem
4. É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então não será uma imagem. Ora, uma vez que, entre os atributos de Deus, se destaca a omnisciência, necessariamente brilhará no homem algo de semelhante a ela. E porque não? Sem dúvida que o homem está no meio das obras de Deus, tendo uma mente lúcida, como um espelho esférico, suspenso na parede de uma sala, o qual recebe a imagem de todas as coisas, digo, de todas as coisas que o rodeiam. Efetivamente, a nossa mente não apreende somente as coisas vizinhas, mas também aproxima de si as que estão afastadas (quer quanto ao lugar, quer quanto ao tempo), ergue-se às que estão elevadas, investiga as ocultas, desvela as veladas e esforça-se por perscrutar até as imperscrutáveis, de tal maneira é algo de infinito e de indeterminável. Se fossem concedidos ao homem mil anos de vida, durante os quais aprendesse constantemente qualquer coisa, deduzindo uma coisa de outra, todavia, teria sempre onde receber outras coisas que se lhe apresentassem, a tal ponto a mente do homem é de capacidade inesgotável que, no conhecimento, se apresenta como um abismo.
O nosso pequeno corpo está encerrado num círculo estreito; a nossa voz vai um pouco mais além; a vista apenas chega à cúpula celeste; mas à nossa mente não pode fixar-se um limite, nem no céu nem fora do céu: tanto se eleva acima dos céus dos céus, como desce abaixo do abismo do abismo; e mesmo que estes espaços fossem milhões de vezes mais vastos do que são, ela aí penetraria, todavia, com incrível rapidez. E havemos então de negar que todas as coisas lhe são acessíveis, que ela é capaz de tudo?
2. Resumo do universo.
5. O homem é chamado pelos filósofos , resumo do universo, compreendendo, de modo obscuro, todas as coisas que se vêem por toda a parte amplamente espalhadas pelo universo (macro-cosmos). Que assim é, demonstrar-se-á noutro lugar [5]. Em conseqüência disso, a mente do homem que entra no mundo compara-se com muita razão a uma semente ou a um caroço, no qual, embora não exista ainda em ato a figura da erva ou da árvore, todavia, nele existe já de fato a erva ou a planta, como se torna evidente quando a semente, metida debaixo da terra, lança para baixo as raízes e para cima os rebentos, os quais, pouco depois, por uma força ingênita, se alongam em ramos e em ramagens, se cobrem de folhas e se adornam de flores e de frutos.
N.B.
Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior, mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza. Por isso, aceitamos que Pitágoras costumava dizer que era tão natural ao homem saber tudo que, se um menino de sete anos fosse prudentemente interrogado acerca de todas as questões de toda a filosofia, com certeza que poderia responder a todas, precisamente porque a luz da razão é a forma e a norma suficiente de todas as coisas. Simplesmente agora, após a queda, que o obscurece e confunde, é incapaz de se libertar pelos seus próprios meios; e aqueles que deveriam ajudá-lo não contribuem senão para aumentar o embaraço em que se encontra.
3. Dotado de sentidos
6. Além disso, à alma racional que habita em nós, foram acrescentados órgãos e como que emissários e observadores, com a ajuda dos quais, ou seja, da vista, do ouvido, do olfato, do gosto e do tato, ela procura chegar a tudo aquilo que se encontra fora dela, de tal maneira que, de todas as coisas criadas, nada pode permanecer-lhe escondido. Uma vez que, portanto, no mundo visível, nada há que se não possa ver, ou ouvir, ou apalpar, e, por isso, que se não possa saber o que é e de que natureza é, daí se segue que nada existe no mundo que o homem, dotado de sentidos e de razão, não consiga apreender.
4. Estimulado pelo desejo de saber.
7. Está implantado também no homem o desejo de saber; e não apenas a aceitação resignada, mas até o apetite do trabalho [6]. Surge logo na primeira idade infantil e acompanha-nos durante toda a vida. Com efeito, quem não experimenta a impaciência de ouvir, de ver ou de apalpar sempre algo de novo? Quem não sente prazer em comparecer todos os dias em qualquer lugar, ou em conversar com alguém, em perguntar qualquer coisa? Em resumo, eis o que se passa: os olhos, os ouvidos, o tato e também a mente, procurando sempre o seu alimento, lançam-se sempre para fora de si mesmos, nada havendo, para uma natureza viva, tão intolerável como o ócio e o torpor. E uma vez que até os idiotas admiram os homens doutos, que significa isto senão que também os idiotas experimentam pelo saber os atrativos de um desejo natural, nos quais eles próprios gostariam de participar, se achassem que isso era possível?; mas porque vêem que isso não é possível, suspiram e olham com reverência aqueles que vêem de inteligência mais elevada.
De onde resulta que muitos, tomando-se a si mesmos por guia, conseguem penetrar no conhecimento das coisas.
8. Os exemplos dos autodidatas mostram, de maneira evidente, que o homem, conduzido pela natureza, pode aprender todas as coisas. Com efeito, alguns foram mais adiante que os seus próprios mestres, ou (como diz S. Bernardo) [7], ensinados pelos carvalhos e pelas faias (ou seja, passeando e meditando nas florestas) fizeram mais progressos que outros, instruídos na escola de diligentes professores. Acaso não nos mostra isto que, dentro do homem, estão, de fato, todas as coisas, isto é, o facho e o candieiro, o azeite e a torcida, e tudo o necessário? Basta-lhe saber riscar o fósforo, fazer tomar fogo à acendalha, e acender as luzes para que veja, tanto em si mesmo como no vasto mundo (observando como todas as coisas foram ordenadas com número, medida e peso [8]), os maravilhosos tesouros da sabedoria de Deus, num espetáculo cheio de beleza. Se, porém, a sua luz interior não está acesa, mas apenas se faz girar do exterior, à volta dele, as lâmpadas das opiniões alheias, não pode acontecer diversamente do que acontece; é como se se fizesse girar archotes à volta de uma prisão obscura e fechada, dos quais entrariam pelos respiradouros somente alguns raios, mas não a plena luz. É precisamente como disse Sêneca: «As sementes de todas as artes estão colocadas dentro de nós, e Deus, nosso mestre, de uma maneira oculta, produz os gênios» [9].
A nossa mente é comparada:
1. à terra;
2. a um jardim;
3. a uma tábua rasa.
9. O mesmo nos ensinam as coisas a que se compara a nossa mente. Com efeito, a terra (à qual, muitas vezes, a Sagrada Escritura compara o nosso coração) [10] não recebe acaso sementes de toda a espécie? E acaso um só e o mesmo jardim não permite que nele se plantem ervas, flores e plantas aromáticas de toda a espécie? Com certeza, se ao jardineiro não falta prudência e zelo. E quanto maior for a variedade, tanto mais belo será o espetáculo para os olhos, tanto mais suave é o prazer para o nariz e tanto mais forte é o conforto para o coração.
Aristóteles comparou a alma humana a uma tábua rasa, onde nada está escrito e onde se pode escrever tudo [11]. Portanto, da mesma maneira que, numa tábua, onde não há nada, o escritor pode escrever, e o pintor pintar aquilo que quer, desde que saiba da sua arte, assim também na mente humana, com a mesma facilidade, quem não ignora a arte de ensinar pode gravar a efígie de todas as coisas. E se isto não acontece, com toda a certeza que não é por culpa da tábua (exceto, uma ou outra vez, quando ela é demasiado rugosa), mas por ignorância do escrivão ou do pintor. Há, porém, uma diferença: na tábua, não é possível traçar linhas senão até ao limite em que as margens o permitem, ao passo que, na mente, por mais que se escreva ou esculpa, nunca se encontra um sinal que indique o termo, pois (como atrás se observou), ela não tem termo.
4. à cera, onde podem imprimir-se infinitos selos.
10. Compara-se também, com razão, o nosso cérebro, oficina dos pensamentos, à cera, onde, ou se imprime um selo, ou de que se fazem estatuetas. Com efeito, da mesma maneira que a cera, adaptando-se a receber qualquer forma, se submete como se quer a tomar e a mudar de figura, assim também o cérebro, prestando-se a receber as imagens de todas as coisas, recebe em si tudo o que o universo contém. Com este exemplo, mostra-se, ao mesmo tempo, de uma maneira elegante, o que é o nosso pensamento e o que é a nossa ciência. Tudo o que me impressiona a vista, o ouvido, o olfato, o gosto e o tato é para mim como um selo, pelo qual a imagem de uma coisa se imprime no cérebro; e nele o imprime de tal maneira que, mesmo que a coisa se afaste dos olhos, dos ouvidos, do nariz e das mãos, permanece sempre a sua imagem; e não é possível que ela não permaneça, a não ser quando uma atenção negligente formou uma impressão débil. Por exemplo: se fixo um homem ou lhe falo; se, viajando, contemplo uma montanha, um rio, um campo, uma floresta, uma cidade, etc.; se, por vezes, ouço trovões, música e discursos; se leio atentamente algumas linhas num livro, etc.; todas estas coisas se imprimem no meu cérebro, de tal maneira que, todas as vezes que a sua recordação se me renova, é o mesmo que se me estivessem diante dos olhos, me ressoassem aos ouvidos e as saboreasse ou apalpasse neste momento. E embora um cérebro, ou receba estas impressões de modo mais distinto, ou as represente com maior clareza, ou as retenha com maior fidelidade que outro, no entanto, cada um deles as recebe, representa e retém, de qualquer maneira.
A capacidade da nossa mente é um milagre de Deus.
11. A este propósito, devemos admirar o espelho da sabedoria de Deus, a qual providenciou de modo que a massa do cérebro, que não é grande sob aspecto nenhum, fosse capaz de receber milhares e milhões de imagens. Com efeito, tudo aquilo que cada um de nós (principalmente as pessoas instruídas), durante tantos anos, viu, ouviu, saboreou, leu e adquiriu com a experiência e com o raciocínio, e de que, segundo as suas forças, se pode recordar, é evidente que tudo isso se conserva ordenado no cérebro, ou seja, as imagens das coisas uma vez vistas, ouvidas, lidas, etc., embora existam por milhões e se multipliquem até ao infinito, com o fato de ver, de ouvir e de ler, quase cada dia, qualquer coisa de novo, todavia, estão contidas no cérebro. Que coisa é esta imperscrutável sabedoria da omnipotência de Deus? Salomão maravilha-se que todos os rios desaguem no oceano e, todavia, não encham o mar (Eclesiastes, 1, 7); e quem não há-de admirar-se com este abismo da nossa memória que tudo recebe e tudo restitui, sem jamais se encher e sem jamais se esvasiar? Assim, a nossa mente é verdadeiramente maior que o mundo, do mesmo modo que o continente é necessariamente maior que o conteúdo.
A nossa mente é um espelho.
12. Finalmente, o olho ou o espelho simboliza muito bem a nossa mente, pois de tudo o que se lhe apresenta, de qualquer forma ou cor que seja, imediatamente mostrará em si uma imagem parecidíssima, a não ser que se lhe apresente um objeto às escuras, ou da parte detrás, ou demasiado longe, por causa da distância maior que o devido, ou que se impeça de receber a impressão, ou esta seja baralhada por um movimento contínuo; nestes casos, temos de confessá-lo, não se obtém êxito. Falo, porém, daquilo que costuma acontecer naturalmente, quando há luz e o objeto é apresentado como convém. Da mesma maneira que, portanto, não é necessário forçar os olhos a abrirem-se e a fixarem os objetos, porque (tal como aquele que naturalmente tem sede de luz) eles experimentam prazer em olhar espontaneamente, e são capazes de olhar todas as coisas (desde que os não perturbem, apresentando-lhes ao mesmo tempo demasiados objetos) e nunca podem saciar-se de olhar; assim também a nossa mente é sequiosa das coisas, está sempre atenta, toma, ou melhor, agarra todas as coisas, sem nunca se cansar, desde que não seja ofuscada com uma multidão de objetos e que, com a devida ordem, se lhe dê a observar uma coisa após outra.
II. No homem, a raiz da honestidade é a harmonia.
13. Os próprios pagãos viram que é natural ao homem a harmonia dos costumes, embora, ignorando outra luz divinamente acrescentada e o guia mais seguro que nos foi dado para chegar à vida eterna, temham considerado (tentativa vã) aquelas centelhas, verdadeiros faróis. Com efeito, assim fala Cícero: «Nas nossas faculdades espirituais estão inatos os gérmens da virtude, os quais, se pudessem desenvolver-se e crescer, seriam suficientes, por natureza, para nos conduzirem à beatitude (isto é exagerado!). Porém, apenas somos dados à luz e começamos a ser educados, rebolamo-nos continuamente em toda a espécie de imundícies, de tal maneira que parece que, juntamente com o leite da ama, bebemos os erros» (Tusculanae, III) [12]. Que é verdadeiro que certos gérmens de virtude nascem juntamente com o homem, infere-se destes dois argumentos: primeiro, todo o homem sente prazer com a harmonia; segundo, ele próprio não é senão harmonia, interior e exteriormente.
1. Com a qual se deleita em toda a parte: em todas as coisas visíveis,
14. Que o homem se deleita com a harmonia e procura ardentemente chegar a ela, é evidente. Efetivamente, a quem se não deleitaria ao ver um homem formoso, um cavalo elegante, uma estátua bela e uma pintura linda? De onde nasce esse prazer senão do fato de que a perfeita proporção das partes e das cores produz o agrado? Essa proporção é o prazer mais natural para os olhos.
nas coisas audíveis,
Pergunto igualmente: a quem não agrada a música? E porquê? Sem dúvida porque a harmonia das vozes produz um som agradável.
nas coisas que se saboreiam,
A quem não agradam os alimentos bem temperados? Sem dúvida porque a temperatura dos sabores deleita agradavelmente o paladar.
nas coisas palpáveis,
Cada um goza com um calor bem proporcionado, com uma frescura bem repartida, com uma posição justa e um movimento equilibrado dos membros. Porquê? Precisamente porque todas as coisas temperadas são amigas e salutares para a natureza e todas as coisas desmesuradas são suas inimigas e prejudiciais.
e até nas próprias virtudes.
Se nós amamos até as virtudes uns nos outros (de fato, mesmo quem é privado de virtude admira as virtudes dos outros, mesmo que os não imite, uma vez que considera impossível vencer os seus maus hábitos), porque é que, portanto, cada um não há-de amar a virtude em si mesmo? Cegos de nós, se não reconhecemos que estão em nós as raízes de toda a harmonia!
2. A qual se encontra também no homem: tanto relativamente ao corpo
15. Mas também o próprio homem não é senão harmonia, tanto relativamente ao corpo, como relativamente à alma. Com efeito, assim como o grande mundo é parecido com um enorme relógio, de tal modo fabricado segundo as regras da arte, com muitíssimas rodas e maquinismos, que para produzir movimentos contínuos e perfeitamente ordenados, uma parte os comunica à outra, através de todo o relógio, assim também o homem.
Com efeito, quanto ao corpo, construído com arte admirável, em primeiro lugar está o coração, que é móvel, fonte de vida e de atividade; dele os outros membros recebem o movimento e a medida do movimento. Mas o peso, ou seja, a verdadeira força motriz, é o cérebro, o qual, servindo-se dos nervos, como de cordas, faz andar as outras rodas (os membros) para diante e para trás. Na verdade, a variedade das operações interiores e exteriores corresponde à exata e perfeita correspondência dos movimentos do relógio.
como no que diz respeito à alma
16. Assim, nos movimentos da alma, a principal roda é a vontade; os pesos que a fazem mover são os desejos e as paixões que inclinam a vontade para esta ou para aquela parte. A válvula, que abre e fecha o movimento, é a razão, a qual mede e determina que coisa, onde e até que ponto se deve abraçar ou afastar. Os outros movimentos da alma são como que as rodas menores, que seguem a principal. Por isso, se aos desejos e às paixões se não atribui um peso demasiado grande, e a válvula, ou seja, a razão, abre e fecha convenientemente, é impossível não se seguir uma ordem e um acordo perfeito de virtudes, isto é, um perfeito equilíbrio das ações e das paixões.
A harmonia perturbada pode remediar-se.
17. Eis, portanto, que realmente o homem em si mesmo não é senão harmonia. Por isso, assim como acerca de um relógio ou de um instrumento musical, feito pelas mãos de um artífice perito, se acaso se estraga ou se torna desafinado, não dizemos imediatamente que já não serve para nada (pode, com efeito, consertar-se e tornar a afinar-se), assim também acerca do homem, embora corrompido pelo pecado, deve afirmar-se que, com determinados meios, é possível saná-lo, por graça da virtude de Deus.
III. Que no homem estão as raízes da religião argumenta-se:
1. pela natureza da sua imagem,
18. Que as raízes da religião estão no homem, por natureza, demonstra-se pelo fato de que ele é a imagem de Deus. Com efeito, a imagem implica semelhança: e que todo o semelhante se congratula com o seu semelhante é lei imutável de todas as coisas (Eclesiástico, 13, 19). O homem, portanto, uma vez que nada tem de igual a si, a não ser Aquele à imagem do qual foi feito, é natural que não seja conduzido pelos seus desejos senão para a fonte de onde derivou, contanto que a conheça com suficiente clareza.
2. pela reverência inata em todos para com a divindade,
19. Isto é evidente também pelo exemplo dos pagãos, os quais, não sendo ajudados por nenhuma palavra de Deus, apenas pelo oculto instinto da natureza chegaram, não só a conhecer Deus, mas também a venerá-lo e a desejá-lo, embora errassem quanto ao número dos deuses e à forma do culto. «Todos os homens têm a noção dos deuses e todos atribuem o lugar supremo a qualquer potência divina», escreve Aristóteles no livro I Do Céu, cap. 3 [13]. E Sêneca: «Em primeiro lugar, o culto divino consiste em acreditar nos deuses; depois, em atribuir-lhes a majestade devida e em atribuir-lhes a bondade, sem a qual não há qualquer majestade; em saber que são eles que governam o mundo, que regulam todas as suas coisas e que providenciam pela conservação do gênero humano» (Carta 96) [14]. Acaso esta opinião difere muito da do Apóstolo? «Porquanto é necessário que o que se aproxima de Deus acredite que Ele existe e que é remunerador dos que O buscam» (Hebreus, II, 6).
3. pelo desejo natural do Sumo Bem (que é Deus),
20. Platão diz: «Deus é o sumo bem, superior a toda a substância e a toda a natureza, o qual é naturalmente desejado por todas as criaturas» (Timeu) [15]. E isto (que Deus é o sumo bem, naturalmente desejado por todas as criaturas) é de tal modo verdadeiro que Cícero diz: «A primeira mestra da piedade é a natureza» (Da natureza dos deuses, I) [16]. E isto “porque (como escreve Lactâncio, no livro 4, cap. 28) fomos gerados com a condição de prestarmos a Deus, que nos criou, as justas e devidas homenagens e de apenas reconhecermos a Ele como Deus e de O seguirmos. Com este vínculo da piedade somos atados e ligados a Deus; de onde a própria religião recebe o seu nome» [17].
que nem sequer pela queda do gênero humano foi extinto.
21. Deve, todavia, confessar-se que este desejo natural de Deus, como sumo bem, foi corrompido com a queda do pecado e degenerou numa espécie de vertigem, que não é capaz de regressar à retidão com as suas próprias forças; naqueles, porém, que Deus de novo ilumina com o seu Verbo e com o seu Espírito, ele volta a aguçar-se de tal modo que David, voltado para Deus, clama: «Quem tenho eu, lá no céu, exceto tu? E, fora de ti, nada me deleita sobre a terra. Desfalece a minha carne e o meu coração, e o rochedo do meu coração e a minha herança é Deus para sempre» (Salmo 72, 24 e 25).
É, portanto, impiamente que se procuram pretextos contra o exercício da piedade.
22. Que ninguém, portanto, enquanto se procuram remédios para corrupção, nos oponha a corrupção, porque Deus, por obra do seu Espírito e com a intervenção de meios adequados, prepara-se para a fazer desaparecer. De fato, assim como a Nabucodonosor, quando foi privado do sentido humano e provido de um coração bestial, lhe foi deixada, todavia, a esperança de poder readquirir a mente humana, e até mesmo também a dignidade real, logo que reconhecesse que o poder vem do céu (Daniel, 4, 23); assim também, a nós, plantas excluídas do paraíso de Deus, foram deixadas as raízes, as quais, sobrevindo a chuva e o sol da graça de Deus, podem de novo germinar.
Porventura o nosso Deus, logo a seguir à queda e à proclamação da nossa ruína (a pena de morte) não plantou imediatamente (com a promessa da semente bendita), de novo, nos nossos corações, rebentos de nova graça? Acaso não nos enviou o seu Filho, pelo qual nos seriam restituídos os bens perdidos?
E não deve sublevar-se o velho Adão contra o novo.
23. É coisa torpe e nefanda e sinal evidente de ingratidão estar sempre a apelar para a corrupção e dissimular a redenção. Correr atrás daquilo que o velho Adão em nós deixou e não procurar aquilo que Cristo, novo Adão, nos proporcionou! Muito acertadamente, o Apóstolo, em seu nome e no de todos os regenerados, diz: «Tudo posso naquele que me conforta, Cristo» (Filipenses, 4, 13). Se é possível que um garfo de árvore doméstica, enxertado num salgueiro, num espinheiro ou em qualquer árvore brava, germine e frutifique, porque não há-de acontecer o mesmo se for enxertado bem sobre a própria raiz? Veja-se a argumentação do Apóstolo (Romanos, 11, 24). Além disso, se Deus, de pedras, pode fazer nascer filhos de Abraão (Mateus, 3, 9), porque não há-de despertar os homens, feitos já filhos de Deus desde a criação, adotados de novo por Cristo e regenerados pelo Espírito da graça, para toda a espécie de boas obras?
A graça de Deus não se deve coarctar, mas reconhecer com gratidão.
24. Abstinhamo-nos de coarctar a graça de Deus, pois Ele está pronto a infundi-la em nós liberalíssimamente. Com efeito, se nós, enxertados em Cristo por meio da fé e dados a Ele por meio do Espírito de adoção, se nós, digo, com a nossa geração, não somos aptos para as coisas do Reino de Deus, como é que então Cristo, falando das criancinhas, afirmou que «é delas o reino de Deus»? [18] Ou como é que no-las apresenta como modelo, ordenando a todos que «se convertam e se façam como crianças, se querem entrar no reino dos céus?» (Mateus, 18, 3). Como é que o Apóstolo proclama santos e nega que sejam impuros os filhos dos cristãos (mesmo quando só um deles pertence ao número dos fiéis)? (Coríntios, I, 7, 14). Pelo contrário, até daqueles que já mergulharam na prática de vícios gravíssimos, o Apóstolo ousa afirmar: «E tais éreis alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Espírito do nosso Deus» (Coríntios, I, 6, 11). Precisamente por isto, quando dizemos que os filhos dos cristãos (não a geração do velho Adão, mas a geração regenerada pelo novo Adão, isto é, os filhos de Deus, os irmãos e as irmãs de Cristo) pedem para serem formados e estão aptos a receber as sementes da eternidade, a quem pode parecer que isto seja impossível? A ninguém, pois não procuramos obter frutos de uma oliveira brava, mas ajudamos os rebentos da árvore da vida, novamente plantados, para que produzam frutos.
Conclusão.
25. Fique, portanto, assente que é mais natural e, pela graça do Espírito Santo, mas fácil, que o homem se torne sábio, honesto e santo, do que a perversidade adventícia poder impedir o progresso. Com efeito, qualquer coisa regressa facilmente à sua natureza. E é esta a advertência que nos faz a Escritura: «A sabedoria facilmente se deixa ver por aqueles que a amam; ela corre mesmo atrás de quem a pede, antes de ser conhecida, e por aqueles que a esperam faz-se encontrar, sem fadiga, sentada à sua porta» (Sabedoria, 6, 13 e ss.). E é conhecida a sentença do poeta venusino: Ninguém é tão selvagem que, prestando paciente ouvido à cultura, não possa ser domesticado [19].

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