terça-feira, 17 de março de 2009

CAPÍTULO 09 AO 11

Capítulo IX
TODA
A JUVENTUDE
DE AMBOS OS SEXOS
DEVE SER ENVIADA
ÀS ESCOLAS

As escolas devem ser asilos comuns da juventude.
1. Que devem ser enviados às escolas não apenas os filhos dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias e casais isolados, demonstram-no as razões seguintes:
1. Por que todos devem ser reformados à imagem de Deus.
2. Em primeiro lugar, todos aqueles que nasceram homens, nasceram para o mesmo fim principal, para serem homens, ou seja, criatura racional, senhora das outras criaturas, imagem verdadeira do seu Criador. Todos, por isso, devem ser encaminhados de modo que, embebidos seriamente do saber, da virtude e da religião, passem utilmente a vida presente e se preparem dignamente para a futura. Que, perante Deus, não há pessoas privilegiadas, Ele próprio o afirma constantemente [1]. Portanto, se nós admitimos à cultura do espírito apenas alguns, excluíndo os outros, fazemos injúria, não só aos que participam conosco da mesma natureza, mas também ao próprio Deus, que quer ser conhecido, amado e louvado por todos aqueles em quem imprimiu a sua imagem. E isso será feito com tanto mais fervor, quanto mais acesa estiver a luz do conhecimento: ou seja, amamos tanto mais, quanto mais conhecemos [2].
2. Todos se devem preparar para os ofícios da sua futura vocacão.
3. Em segundo lugar, porque não nos é evidente para que coisa nos destinou a divina providência. É certo, porém, que, por vezes, de pessoas paupérrimas, de condição baixíssima e obscurantíssima, Deus constitui órgãos excelentes da sua glória. Imitemos, por isso, o sol celeste, que ilumina, aquece e vivifica toda a terra, para que tudo o que pode viver, verdejar, florir e frutificar, viva, verdeje, floresça e frutifique.
3. Alguns sobretudo (os estúpidos e os débeis por natureza) devem ser muito ajudados.
4. Não deve fazer-nos obstáculo o fato de vermos que alguns são rudes e estúpidos por natureza, pois isso ainda mais recomenda e torna mais urgente esta universal cultura dos espíritos. Com efeito, quanto mais alguém é de natureza lenta ou rude, tanto mais tem necessidade de ser ajudado, para que, quanto possível, se liberte da sua debilidade e da sua estupidez brutal. Não é possível encontrar um espírito tão infeliz, a que a cultura não possa trazer alguma melhoria. Certamente, da mesma maneira que um vaso esburacado, muitas vezes lavado, embora não conserve nenhuma gota de água, todavia, torna-se mais liso e mais limpo, assim também os débeis e os estúpidos, mesmo que nos estudos não façam nenhum progresso, tornam-se, todavia, mais brandos nos costumes, de modo a saberem obedecer às autoridades políticas e aos ministros da Igreja. Consta, de resto, pela experiência, que certos indivíduos, por natureza muito lentos, depois de terem seguido o curso dos estudos, passaram à frente de outros mais bem dotados. E isto é tão verdadeiro que um poeta afirmou: «O trabalho obstinado vence tudo» [3]. Além disso, da mesma maneira que alguém, na infância, é belo e forte de corpo, e depois se torna enfermiço e emagrece, e um outro, ao contrário, em jovem, é de constituição doentia, e depois adquire força e cresce robusto, assim também se verifica com as inteligências, de tal maneira que algumas são precoces, mas depressa se esgotam e acabam por se tornar obtusas, e outras a princípio são rudes, mas depois tornam-se finas e muito penetrantes. Além disso, gostamos de ter nos pomares, não apenas árvores que produzem frutos precoces, mas também árvores que produzem frutos de meia estação, e frutos serôdios, porque cada coisa é boa no seu tempo (como diz algures o Eclesiástico) [4] e, embora tarde, acaba por mostrar, em determinada altura, que não existia em vão. Porque é que, então, no jardim das letras, apenas queremos tolerar as inteligências de uma só espécie, ou seja, as precoces e ágeis? Ninguém, por conseguinte, seja excluído, a não ser a quem Deus negou a sensibilidade e a inteligência.
Deve admitir-se nos estudos também o sexo frágil? Sim.
5. Não pode aduzir-se nem sequer um motivo válido pelo qual o sexo fraco (para que acerca deste assunto diga particularmente alguma coisa) deva ser excluído dos estudos (quer estes se ministrem em latim, quer se ministrem na língua maternal. Com efeito, as mulheres são igualmente imagens de Deus, igualmente participantes da graça e do reino dos céus, igualmente dotadas de uma mente ágil e capaz de aprender a sabedoria (muitas vezes até mais que o nosso sexo), igualmente para elas está aberto o caminho dos ofícios elevados; uma vez que, freqüentemente, são chamadas pelo próprio Deus para o governo dos povos, para dar salutares conselhos a reis e a príncipes, para exercer a medicina e outras artes salutares ao gênero humano, para pronunciar profecias e exprobar sacerdotes e bispos. Porque é que, então, as havíamos de admitir ao abc e depois as havíamos de afastar do estudo dos livros? Temos medo que cometam temeridades? Mas quanto mais lhes tivermos ocupado o pensamento, tanto menor lugar encontrará a temeridade, a qual, normalmente, é originada pela desocupação da mente.
Todavia, com que precaução?
6. Todavia, de tal maneira que lhes não seja dado como alimento toda a espécie de livros (do mesmo modo que à juventude de outro sexo; sendo deplorável que, até aqui, este mal não tenha sido evitado com maior precaução), mas livros nos quais possam haurir constantemente, com o verdadeiro conhecimento de Deus e das suas obras, verdadeiras virtudes e a verdadeira piedade.
Rebate-se uma objeção.
7. Ninguém, portanto, me objete com as palavras do Apóstolo: «Não permito à mulher que ensine» (Timóteo, I, 2, 12), ou com as de Juvenal, na Sátira 6:
Que a mulher que se deita juntamente contigo não tenha a mania de falar ou de enrolar frases para construir entimemas, nem saiba todas as histórias [5].

ou com aquilo que, em Euripedes, diz Hipólito:

Odeio a mulher erudita, para que em minha casa nunca se encontre uma que saiba mais do que convém saber a uma mulher. Com efeito, Vênus inspira maior astúcia às mulheres eruditas [6].

Estas afirmações, repito, nada obstam ao nosso conselho, pois é nossa opinião que as mulheres sejam instruídas, não para a curiosidade, mas para a honestidade e para a beatitude. Sobretudo naquelas coisas que a elas importa saber e que podem contribuir quer para administrar dignamente a vida familiar, quer para promover a sua própria salvação, a do marido, dos filhos e de toda a família.
Outra objeção.
8. Se alguém disser: onde iremos nós parar, se os operários, os agricultores, os moços de fretes e finalmente até as mulheres se entregarem aos estudos? Respondo: acontecerá que, se esta educação universal da juventude for devidamente continuada, a ninguém faltará, daí em diante, matéria de bons pensamentos, de bons desejos, de boas inspirações e também de boas obras. E todos saberão para onde devem dirigir todos os atos e desejos da vida, por que caminhos devem andar e de que modo cada um há-de ocupar o seu lugar. Além disso, todos se deleitarão, mesmo no meio dos trabalhos e das fadigas, meditando nas palavras e nas obras de Deus, e evitarão o ócio, causa de pecados carnais e de delitos de sangue, lendo freqüentemente a Bíblia e outros bons livros (e estes prazeres, muito doces, atraiem quem já os saboreou). E, para que diga tudo de uma só vez, aprenderão a ver Deus por toda a parte, a louvá-lo por toda a parte, a aproximar-se dele por toda a parte; e, deste modo, aprenderão a passar com maior alegria esta vida de misérias e a esperar, com maior desejo e maior esperança, a vida eterna. Acaso não é verdade que semelhante estado da Igreja representaria para nós o paraíso, tal como é possível tê-lo na terra?

Capítulo X
NAS ESCOLAS,
A FORMAÇÃO
DEVE SER UNIVERSAL

Que se entende por aquele «tudo» que, nas escolas, se deve ensinar e aprender?
1. Importa agora demonstrar que, nas escolas, se deve ensinar tudo a todos. Isto não quer dizer, todavia, que exijamos a todos o conhecimento de todas as ciências e de todas as artes (sobretudo se se trata de um conhecimento exato e profundo). Com efeito, isso, nem, de sua natureza, é útil, nem, pela brevidade da nossa vida, é possível a qualquer dos homens. Vemos, com efeito, que cada ciência se alarga tão amplamente e tão sutilmente (pense-se, por exemplo, nas ciências físicas e naturais, na matemática, na geometria, na astronomia, etc. e ainda na agricultura ou na sivicultura, etc.) que pode preencher toda a vida, mesmo de inteligências grandemente dotadas que acaso queiram dedicar-se à teoria e à prática, como aconteceu com Pitágoras na matemática [1], com Arquimedes na mecânica, com Agrícola na mineralogia [2], com Longólio na retórica (o qual se ocupou de uma só coisa, para que viesse a ser um perfeito ciceroniano) [3]. Pretendemos apenas que se ensine a todos a conhecer os fundamentos, as razões e os objetivos de todas as coisas principais, das que existem na natureza como das que se fabricam, pois somos colocados no mundo, não somente para que façamos de espectadores, mas também de atores. Deve, portanto, providenciar-se e fazer-se um esforço para que a ninguém, enquanto está neste mundo, surja qualquer coisa que lhe seja de tal modo desconhecida que sobre ela não possa dar modestamente o seu juízo e dela, se não possa servir prudentemente para um determinado uso, sem cair em erros nocivos.
Ou seja, aquelas coisas que dizem respeito à cultura do homem todo.
2. Deve, portanto, tender-se inteiramente e sem exceção para que, nas escolas, e, conseqüentemente, pelo benéfico efeito das escolas, durante toda a vida: I. se cultivem as inteligências com as ciências e com as artes; II. se aperfeiçoem as línguas; III. se formem os costumes para toda a espécie de honestidade; IV. se preste sinceramente culto a Deus.
Ciência, prudência, piedade.
3. Efetivamente, disse uma palavra de sábio aquele que afirmou que as escolas são oficinas de humanidade [4], contribuindo, em verdade, para que os homens se tornem verdadeiramente homens, isto é (tendo em vista os objetivos atrás estabelecidos): I. criatura racional; II. criatura senhora das outras criaturas (e também de si mesma); III. criatura delícia do seu Criador. O que acontecerá se as escolas se esforçarem por produzir homens sábios na mente, prudentes nas ações e piedosos no coração.
Que estas coisas se não devem separar, prova-se:
4. Por conseguinte, estas três coisas deverão ser implantadas em todas as escolas para benefício de toda a juventude. O que demonstrarei, indo buscar o fundamento de meu raciocinio: I. às coisas que neste mundo nos rodeiam; II. a nós mesmos; III. a Cristo, Homem-Deus , modelo perfeitíssimo da nossa perfeição.
1. a partir da coerência das próprias coisas.
5. As próprias coisas, enquanto nos dizem respeito, não podem ser divididas senão em três espécies. Na verdade: algumas são apenas objeto de observação, como o céu e a terra e as coisas que neles existem; outras são objeto de imitação, como a ordem admirável espalhada por toda a parte, a qual o homem tem obrigação de exprimir também nas suas obras; outras, enfim, são objeto de fruição, como o favor da divindade e a sua multíplice benção, neste mundo e para sempre. Se o homem deve ser semelhante a estas coisas, importa necessariamente que se prepare, tanto para conhecer as coisas, que, neste maravilhoso anfiteatro, se oferecem à sua observação, como para fazer aquelas coisas que se lhe ordena que faça, como, finalmente, para gozar daquelas que, com mão liberal, o benigníssimo Criador lhe oferece (como a um hóspede que esteja em sua casa) para sua fruição.
2. a partir da essência da nossa alma.
6. Se nos observarmos a nós mesmos, depreendemos igualmente que a todos, por igual, convém a instrução, a moralidade e a piedade, quer observemos a essência da nossa alma, quer a finalidade para que fomos criados e postos no mundo.

7. A essência da alma é constituída por três faculdades (as quais refletem a Trindade incriada): inteligência, vontade e memória. A inteligência alarga-se a observar as diferenças das coisas (até às mais pequenas minúcias); a vontade dirige-se à escolha das coisas, ou seja, a escolher as que são boas e a rejeitar as que são prejudiciais; a memória, por sua vez, retém, para uso futuro, as coisas de que, alguma vez, se ocuparam a inteligência e a vontade, e lembra à alma a sua origem (deriva de Deus) e a sua missão; sob este aspecto, chama-se também consciência. Ora, para que estas três faculdades possam cumprir bem a sua missão, é necessário instruí-las perfeitamente em coisas que iluminem a inteligência, dirijam a vontade e estimulem a consciência, de modo que a inteligência penetre profundamente, a vontade escolha sem erro, e a consciência refira tudo avidamente a Deus. Ora, assim como aquelas três faculdades (a inteligência, a vontade e a consciência), uma vez que constituem uma mesma alma, não podem separar-se, assim também aqueles três ornamentos da alma, a instrução, a virtude e a piedade, não devem separar-se.
E a partir do fim da nossa missão no mundo.
8. Se agora considerarmos porque é que fomos colocados no mundo, de novo se tornará evidente que as finalidades são três: para servir a Deus, às criaturas e a nós mesmos; e para gozar o prazer emanante de Deus, das criaturas e de nós mesmos.
1. Para que sirvamos a Deus, ao próximo e a nós mesmos.
9. Se queremos servir a Deus, ao próximo e a nós mesmos, é necessário que tenhamos, em relação a Deus, piedade; em relação ao próximo, honestidade; e em relação a nós mesmos, ciência. Estas coisas estão, porém, de tal maneira ligadas que, do mesmo modo que o homem deve ser, para consigo mesmo, não só prudente, mas também morigerado e piedoso, assim também não só os nossos costumes, mas também o nosso saber e a nossa piedade devem servir para utilidade do próximo; e não somente a nossa piedade, mas também o nosso saber e os nossos costumes devem servir para louvor de Deus.
3. Para que gozemos um tríplice prazer permanente:
10. Se consideramos o prazer, vemos que Deus afirmou na criação que o homem é destinado a gozá-lo, uma vez que o introduziu num mundo já dotado de toda a espécie de bens, e, além disso, em atenção a ele, criou um paraíso de delícias; e, finalmente, resolveu torná-lo participante da sua eterna beatitude.
11. Deve, todavia, entender-se por prazer, não o do corpo (embora também este, uma vez que não é senão o vigor da saúde, e o agrado do alimento e do sono, não possa derivar senão da virtude da temperança), mas o da alma, o qual resulta, ou das coisas que nos cercam, ou de nós mesmos, ou então de Deus.
a) das próprias coisas,
12. O prazer que brota das próprias coisas é aquela alegria que o homem sábio experimenta nas suas observações. Com efeito, seja o que for que ele faça, para qualquer lado que se volte, em qualquer coisa que fixe a sua atenção, em tudo e por tudo permanece preso de tamanha alegria, que, muitas vezes, como que arrebatado fora de si, se esquece de si mesmo. É precisamente o que afirma o livro da sabedoria: «Conservar a sabedoria não produz amargura e conviver com ela não produz tédio, mas alegria e contentamento» (Sabedoria, 8, 16). E um sábio pagão escreveu:
:
«Na vida, nada há mais doce que o filosofar» [5].
b) de nós mesmos,
13. O prazer que cada um goza em si mesmo é aquele dulcíssimo deleite que o homem, entregue à virtude, goza pela sua boa disposição interior, sentindo-se pronto para tudo o que a ordem da justiça requer. Esta alegria é muito maior que aquela de que, há pouco, falámos, segundo esta máxima: A boa consciência é um banquete perene [6].
c) de Deus.
14. O prazer que nos vem de Deus é o mais alto grau de alegria que se pode experimentar nesta vida, uma vez que o homem, sentindo que Deus lhe é eternamente propício, exulta de tal maneira no seu paternal e imutável favor, que o coração se lhe consome no amor de Deus; e já não sabe nem fazer nem desejar outra coisa senão, imergindo-se todo na misericórdia de Deus, viver uma doce tranqüilidade e saborear, já neste mundo, a alegria da vida eterna. «Esta é a paz que Deus nos concede e que está acima de todo o entendimento humano» (Filipenses, 4, 7), não sendo possível desejar nem pensar coisa mais sublime. Portanto, aquelas três coisas, a instrução, a virtude e a piedade, são as três fontes, das quais brotam todos os arroios dos mais perfeitos prazeres.
3. Pelo exemplo de Cristo, nosso modelo.
15. Por último, que estas três coisas devem existir em todos e em cada um, ensinou-o com o seu exemplo aquele que se manifestou na carne (para mostrar em si a forma e a norma de todas as coisas), Deus. Com efeito, o evangelista afirma que ele, enquanto crescia em idade, crescia em sabedoria e em graça, diante de Deus e dos homens (Lucas, 2, 52). Eis onde se encontram aquelas três bases dos nossos ornamentos! Efetivamente, que é a sabedoria senão o conhecimento de todas as coisas como são na realidade? Que é que produz a graça diante dos homens, senão a amabilidade dos costumes? E que é que nos grangeia a graça diante de Deus, senão o temor do Senhor, ou seja, a íntima, séria e fervorosa piedade? Sintamos, portanto, em nós aquilo que se encontra em Cristo Jesus, o qual é o protótipo perfeitíssimo de toda a perfeição, com o qual nos devemos conformar.

16. Precisamente por isso, com efeito, Ele disse: «Aprendei de mim» (Mateus, 11, 29). E porque o próprio Cristo foi dado ao gênero humano como mestre sapientíssimo, sacerdote santíssimo e rei potentíssimo, é evidente que os cristãos devem ser formados segundo o modelo de Cristo, e tornar-se sábios na mente, santos na pureza de consciência e fortes (cada um segundo a sua vocação) nas obras. Portanto, as nossas escolas virão a ser, finalmente, verdadeiras escolas cristãs, se nos fazem o mais semelhantes possível a Cristo.
Infeliz divórcio.
17. Verifica-se, portanto, um infeliz divórcio, em todos os casos em que estas três coisas não estão unidas por um ligame adamantino. Infeliz a instrução que se não converte em moralidade e em piedade! Com efeito, que é a ciência sem a moral? Quem progride na ciência e regride na moral (é máxima antiga), anda mais para trás que para a frente [7]. Por isso, aquilo que Salomão disse da mulher formosa, mas inimiga da sabedoria, pode dizer-se também de um homem douto, mas de maus costumes: «A instrução infundida num homem inimigo da virtude é um colar de ouro colocado no focinho de um porco» (Provérbios, 11, 22). Da mesma maneira que as pedras preciosas se não encastoam no chumbo, mas no ouro, para que em conjunto irradiem um brilho mais esplendoroso, assim também a ciência não deve juntar-se à libertinagem, mas à virtude, para que uma aumente o brilho da outra. E quando a uma e outra se junta uma piedade verdadeira, então a perfeição ficará completa. De fato, o temor de Deus, da mesma maneira que é o princípio e o fim da sabedoria, é também o cume e a coroa da ciência, porque a plenitude da sabedoria consiste em temer o Senhor. (Provérbios, 1, 7; Eclesiástico, 1, 14 e noutros lugares) [8].
Conclusão.
18. Em resumo, uma vez que dos anos da infância e da educação depende todo o resto da vida, se os espíritos de todos não forem preparados desde então para todas as coisas de toda a vida, está tudo perdido. Portanto, assim como no útero materno se formam os mesmos membros para todo o ser que há-de tornar-se homem, e para cada um se formam todos, as mãos, os pés, a língua, etc., embora nem todos venham a ser artesãos, corredores, escrivães e oradores, assim também, na escola, deve ensinar-se a todos todas aquelas coisas que dizem respeito ao homem, embora, mais tarde, umas venham a ser mais úteis a uns e outras a outros.

Capítulo XI
ATÉ AGORA
NÃO TEM HAVIDO ESCOLAS
QUE CORRESPONDAM
PERFEITAMENTE AO SEU FIM

Que é uma escola que corresponda exatamente ao seu fim?
1. Parecerei excessivamente presunçoso com esta afirmação ousada. Mas vou abordar o assunto de frente, constituindo o leitor como juiz e não representando eu próprio senão o papel de ator. Chamo escola perfeitamente correspondente ao seu fim aquela que é uma verdadeira oficina de homens, isto é, onde as mentes dos alunos sejam mergulhadas no fulgor da sabedoria, para que penetrem prontamente em todas as coisas manifestas e ocultas (como diz o Livro da Sabedoria, 7, 21), as almas e as inclinaçõcs da alma sejam dirigidas para a harmonia universal das virtudes, e os corações sejam trespassados e inebriados de amores divinos, de tal maneira que, já na terra, se habituem a viver uma vida celeste todos aqueles que, para se embeberem de verdadeira sabedoria, são enviados às escolas cristãs. Numa palavra: onde absolutamente tudo seja ensinado absolutamente a todos («ubi Omnes, Omnia, Omnino, doceantur»).
Que as escolas devem ser assim, mas que, de fato, o não são, demonstra-se:
2. Mas qual é a escola que, até hoje, se propôs este grau de perfeição? Não falemos sequer em alguma que o tenha atingido. Mas para que não pareça que acalentamos ideias platônicas e sonhamos com uma perfeição que não existe em parte alguma, nem talvez possa esperar-se nesta vida, mostraremos, com outro argumento, que as escolas devem ser como disse, e que, todavia, até agora, não têm sido assim.
1. Com o voto de Lutero
3. Lutero, na sua exortação às cidades do Império, para que constituíssem escolas (em 1525), entre outras coisas, emitiu estes dois votos: Primeiro, «que, em todas as cidades, vilas e aldeias, sejam fundadas escolas, para educar toda a juventude de ambos os sexos (precisamente como, no capítulo IX, mostrámos dever fazer-se), de tal maneira que, mesmo aqueles que se dedicam à agricultura e às profissões manuais, freqüentando a escola, ao menos duas horas por dia, sejam instruídos nas letras, na moral e na religião». Segundo: «que sejam instruídos com um método muito fácil, não só para que se não afastem dos estudos, mas até para que para eles sejam atraídos como para verdadeiros deleites», e, como ele diz, «para que as crianças experimentem nos estudos um prazer não menor que quando passam dias inteiros a brincar com pedrinhas, com a bola, e às corridas». Assim falava Lutero [1].
2. Com o testemunho das próprias coisas. Com efeito:
4. Conselho verdadeiramente sábio e digno de tão grande homem. Mas quem não vê que, até agora, permaneceu um simples voto? Onde estão, com efeito, essas escolas universais? Onde está esse método atraente?
1) Ainda não foram fundadas escolas por toda a parte.
5. Vemos precisamente o contrário: nas aldeias e nos pequenos povoados, não foram ainda fundadas escolas.
2) E não se pensa em que, onde existem, sejam para todos.
6. E, onde existem, não são indistintamente para todos, mas apenas para alguns, ou seja, para os ricos, porque, sendo dispendiosas, nelas não são admitidos os mais pobres, salvo casos raros, ou seja, quando alguém faz uma obra de misericórdia. No entanto, é provável que, de entre os pobres, inteligências muitas vezes excelentes passem a vida e morram sem poder instruir-se, com grave dano para a Igreja e para o Estado.
3) Não são escolas, mas padarias.
7. Além disso, na educação da juventude, usou-se quase sempre um método tão duro que as escolas são consideradas como os espantalhos das crianças, ou as câmaras de tortura das inteligências. Por isso, a maior e a melhor parte dos alunos, aborrecidos com as ciências e com os livros, preferem encaminhar-se para as oficinas dos artesãos, ou para qualquer outro gênero de vida.
4. Em lugar algum se ensina tudo, e nem sequer as coisas principais.
8. Àqueles que ficam na escola (ou constrangidos pela vontade dos pais e dos benfeitores, ou aliciados pela esperança de, com os estudos, conseguirem um dia um pouco de autoridade, ou impelidos por uma força espontânea da natureza para uma educação liberal), a esses, ministra-se uma cultura, é certo, mas sem a seriedade e a prudência necessárias, anacrônica e má sob todos os aspectos. Efetivamente, aquilo que sobretudo se devia implantar na alma dos jovens, isto é, a piedade e a moralidade, descura-se de modo particular. E afirmo que estas duas coisas, em todas as escolas (mesmo nas Universidades, que deviam ser o ponto mais alto da cultura humana), têm sido as mais descuradas, e, em conseqüência disso, a maioria das vezes, saiem de lá, em vez de cordeiros mansos, ferozes burros selvagens e mulos indômitos e petulantes; e, em vez de uma índole modelada pela virtude, trazem de lá um conjunto de boas maneiras que de moral têm apenas o verniz, e os olhos, as mãos e os pés adestrados para as vaidades mundanas. Na verdade, a quantos destes homúnculos, polidos durante tanto tempo com o estudo das línguas e das artes, virá à mente ser, para todos os outros homens, exemplo de temperança, de castidade, de humildade, de humanidade, de gravidade, de paciência, de continência, etc.? E de onde nasce o mal senão do fato de que se não exige às escolas que ensinem a viver honestamente? Isto é testemunhado pela disciplina dissoluta de quase todas as escolas, pelos costumes relaxados de todas as classes sociais e pelos infinitos lamentos, suspiros e lágrimas de muitas pessoas piedosas. E há ainda alguém que possa defender o estado das escolas? A doença hereditária, descida até nós a partir das duas primeiras criaturas, domina-nos de tal modo que, posta de parte a árvore da vida, voltamos desordenadamente os nossos apetites só para a árvore da ciência. E as escolas, secundando estes apetites desordenados, até agora não têm procurado senão a ciência.
5) Não com um método atraente, mas violento.
9. E, mesmo isto, com que método e com que resultado? De modo a reter os estudantes durante cinco, dez, ou mais anos, em coisas que a mente humana é capaz de aprender em um ano. O que se poderia inculcar e infundir suavemente nos espíritos, é neles impresso violentamente, ou melhor, é neles enterrado e ensacado. O que poderia ser posto diante dos olhos de modo claro e distinto, é apresentado de modo obscuro, confuso e intrincado, como que por meio de enigmas.
6. É ministrada uma instrução mais verbal que real.
10. Deixo de lado que, nas presentes circunstâncias, quase nunca os espíritos são alimentados com coisas verdadeiramente substanciosas, mas, na maior parte dos casos, são atulhados com palavras ocas (palavras de vento e linguagem de papagaio) e com opiniões que pesam tanto como a palha e o fumo.
O ensino da língua latina é prolixo e confuso.
11. O próprio estudo da língua latina (abordo-o de passagem, apenas para citar um exemplo), ó bom Deus, como é intrincado, como é penoso, como é longo! Quaisquer serventes, criados ou moços de recados, entregues aos trabalhos da cozinha, aos serviços militares ou a outros serviços vis, aprendem mais depressa uma língua qualquer, ou até duas ou três, embora diferente da sua língua materna, que os alunos das escolas aprendem só o latim, embora tenham todo o tempo livre e se entreguem ao estudo com todas as suas forças. E como é desigual o resultado! Os primeiros, após alguns meses, falam correntemente em língua estrangeira; os segundos, mesmo depois de quinze ou vinte anos, na maior parte dos casos não são capazes de dizer senão certas coisas em latim, a não ser que se socorram de gramáticas e de dicionários como os coxos de muletas; e, mesmo essas coisas, não sem hesitar e titubear. De onde pode vir este deplorável dispêndio de tempo e de esforço, senão de um método defeituoso?
Lamento de Lubin acerca disto.
12. A respeito deste método, escreveu, com razão, o eminente Eilhard Lubin, doutor em Teologia e professor na Universidade de Rostock: «O método corrente de educar as crianças nas escolas parece-me inteiramente como algo que alguém, empregando todo o seu esforço e toda a sua capacidade, fosse encarregado de pensar a maneira ou o método com o qual os professores conduzissem e os alunos fossem conduzidos ao conhecimento da língua latina apenas com imensas fadigas, com enorme tédio e com infinitas penas, e apenas após um longuíssimo espaço de tempo.
Quanto mais penso neste erro, ruminando no meu espírito atormentado, tanto mais sinto o coração apertar-se e arrepios percorrerem os meus ossos».
E, logo a seguir, acrescenta: «Enquanto, comigo mesmo, penso freqüentemente nestas coisas, confesso que, mais de uma vez, fui levado a pensar e a crer firmemente que estas coisas foram introduzidas nas escolas por um gênio maligno e invejoso, inimigo do gênero humano» [2]. Assim fala este mestre. De entre muitos outros testemunhos de pessoas de valor, quis citar apenas este.
E do autor.
13. Mas, afinal, que necessidade há de procurar testemunhos? Quantos de nós, terminados os estudos, saimos das escolas e das academias, apenas com umas vagas tintas de uma verdadeira cultura! Eu próprio, mísero homúnculo, sou um desses muitos milhares que passaram e gastaram miseravelmente a ameníssima primavera da vida e os anos florescentes da juventude nas banalidades da escola. Ah! quantas vezes, mais tarde, quando comecei a ver as coisas um pouco melhor, a recordação do tempo perdido me arrancou suspiros do peito, lágrimas dos olhos e gritos de dor do coração. Ah! quantas vezes essa dor me levou a exclamar:
«oh! se Júpiter me voltasse a dar os anos passados!» [3].
Lamentos e votos para que as coisas mudem para melhor.
14. Mas estes desejos são vãos, pois o dia que passa não voltará mais. Nenhum de nós, que estamos já carregados de anos, voltará a rejuvenescer de modo a poder dar à vida uma nova direção e a preparar-se melhor para ela com a instrução. Para nós, já não há remédio. Resta-nos apenas uma coisa, uma só coisa é possível: que tudo aquilo que pudermos fazer em proveito dos nossos vindouros, o façamos, ou seja, demonstrado em que erros nos lançaram os nossos professores, lhes mostremos o caminho de evitar esses erros. E isto se fará no nome e sob a direção daquele «que é o único que pode enumerar os nossos defeitos e endireitar as nossas idéias tortas» (Eclesiastes, I, 15).

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