terça-feira, 17 de março de 2009

CAPÍTULO 06 AO 08

Capítulo VI
O HOMEM
TEM NECESSIDADE
DE SER FORMADO,
PARA QUE SE TORNE
HOMEM

As sementes não são ainda frutos.
1. Como vimos, a natureza dá as sementes do saber da honestidade e da religião, mas náo dá propriamene o saber, a virtude e a religião; estas adquirem-se orando, aprendendo, agindo. Por isso, e não sem razão, alguém definiu o homem um «animal educável», pois não pode tornar-se homem a não ser que se eduque.
É inata no homem a aptidão para saber, mas não o próprio saber.
2. Efetivamente, se consideramos a ciência das coisas, é próprio de Deus saber tudo, sem princípio, sem progresso, sem fim, mediante um só e simples ato de intuição; mas nem ao homem nem ao anjo pode dar este saber, pois não lhe podia dar a infinitude e a eternidade, isto é, a divindade. Aos homens e aos anjos basta aquele grau de excelência de haverem recebido a agudeza de inteligência, com a qual podem indagar as obras de Deus e assim acumular para si um tesouro intelectual. Precisamente por isso, consta, acerca dos anjos, que eles, contemplando, aprendem (Pedro, I, 1, 12; Efésios, 3, 10; Reis, I, 22, 20; Job, 1, 6); e, por isso, o conhecimento deles, de igual modo que o nosso, é experimental.
Que o homem deve ser formado «ad humanitatem», mostra-se:
1. com o exemplo das outras criaturas.
3. Ninguém acredite, portanto, que o homem pode verdadeiramente ser homem, a não ser aquele que aprendeu a agir como homem, isto é, aquele que foi formado naquelas virtudes que fazem o homem. Isto é evidente pelos exemplos de todas as criaturas, as quais se não tornam úteis ao homem, embora a isso destinadas, a não ser depois de adaptadas pela nossa mão. Por exemplo: as pedras foram-nos dadas para servirem para construir casas, torres, muros, colunas, etc.; mas, de fato, não servem para isso, a não ser depois de talhadas, desbastadas e esquadriadas pelas nossas mãos. Do mesmo modo, as pérolas e as gemas, destinadas a servirem de ornamentos humanos, devem ser cortadas, raspadas e polidas pelos homens; os metais, produzidos para usos notáveis da nossa vida, devem ser cavados, liquefeitos, depurados, fundidos e trabalhados a martelo de vários modos; sem tudo isso, são para nós menos úteis que a lama. Das plantas, extraímos alimentos, bebidas e remédios, com a condição, porém, de que é necessário semear, sachar, ceifar, debulhar, moer e pisar os cereais e as ervas; as árvores é necessário plantá-las, podá-las e estrumá-las; os frutos colhê-los, secá-los, etc.; e, muito mais, se qualquer destas coisas deve servir para remédio ou para construir, pois nesse caso é necessário prepará-las de muitíssimos outros modos. Os animais, uma vez que dotados de vida e de movimento, parece que se bastem a si mesmos; todavia, se alguém se quer servir deles para o uso para que foram concedidos, é necessário que primeiro os submeta a exercícios. Eis, com efeito, um cavalo de batalha, um boi para carretos, um burro de carga, um cão de guarda ou de caça, um falcão e um gavião de caça, etc., cada um tem inata a aptidão para esse serviço determinado; todavia, valem bem pouco, se não são treinados para o exercício da sua função.
2. Com o exemplo do próprio homem, quanto às ações corpóreas.
4. O homem, enquanto tem um corpo, é feito para trabalhar; vemos, todavia, que de inato ele não tem senão a simples aptidão; pouco a pouco, é necessário ensinar-lhe a estar sentado e a estar de pé, a caminhar e a mover as mãos, a fim de que aprenda a fazer qualquer coisa. Como pode, portanto, a nossa mente, sem uma preparação prévia, ter a prerrogativa de se mostrar perfeita em si e por si? Não é possível, porque é lei de todas as coisas criadas o começar do nada e elevar-se gradualmente, tanto no que diz respeito à essência como no que diz respeito às ações. Com efeito, até acerca dos anjos, muito vizinhos de Deus em perfeição, consta que não sabem tudo, mas progridem gradualmente no conhecimento da admirável sabedoria de Deus, como notámos pouco atrás.
3. E porque já antes da queda, era necessário exercitar o homem, muito mais é necessário agora, depois da corrupção.
5. É evidente também que, já antes da queda, havia sido aberta, para o homem, no paraíso terrestre, uma escola, na qual ele ia, pouco a pouco, fazendo progressos. Com efeito, embora às duas primeiras criaturas, apenas criadas, não faltasse nem o movimento, nem a palavra, nem o raciocínio, todavia, do colóquio de Eva com a serpente, torna-se evidente que não tinham conhecimento das coisas, o qual vem da experiência; pois se aquela desventurada fosse dotada de uma experiência mais rica, não teria admitido com tanta simplicidade quanto a serpente lhe disse, pois teria então a certeza de que aquela criatura não podia ser dotada da capacidade de discorrer, e que, por isso, devia estar a ser vítima de um engano. Com maior razão, portanto, se poderá sustentar que agora, no estado de corrupção, se se quer saber alguma coisa, é necessário aprendê-la, porque realmente vimos ao mundo com a mente nua como uma tábua rasa, sem saber fazer nada, sem saber falar, nem entender; mas é necessário edificar tudo a partir dos fundamentos. E, na verdade, isto consegue-se mais dificilmente do que se conseguiria no estado de perfeição, porque as coisas são para nós obscuras e as línguas confusas (de tal modo que, em vez de uma só, se devem agora aprender várias, se alguém, para se instruir, quer falar em várias línguas, vivas e mortas); além disso, porque as línguas vernáculas se tornaram mais complicadas, e, quando nascemos, nada conhecemos delas.
E porque os exemplos mostram que o homem sem instrução não se torna mais que um bruto.
6. Temos exemplos de alguns que, raptados na infância pelas feras e crescidos no meio delas [1], nada mais sabiam que os brutos; mais ainda, com a língua, com as mãos e com os pés, não eram capazes de fazer nada de diverso daquilo que fazem os animais, a não ser que, de novo, tenham sido conservados, durante algum tempo, entre os homens. Aduzirei dois exemplos: por 1540, numa aldeia de Hessen, situada no meio de florestas, aconteceu que um menino de três anos, por incúria dos pais, se perdeu. Alguns anos depois, os camponeses viram correr, juntamente com os lobos, um animal de forma diferente, quadrúpede, mas com face semelhante à do homem; como, à força de se falar no caso, a novidade se espalhou, o chefe daquela aldeia ordenou-lhes que vissem se havia maneira de o prender vivo. Em conformidade com esta ordem, foi apanhado e conduzido ao chefe da aldeia, e finalmente enviado ao príncipe de Kassel. Introduzido na sala do príncipe, pôs-se a correr, fugiu, e foi esconder-se debaixo de um banco, olhando com ar ameaçador e lançando terríveis uivos. O príncipe fê-lo alimentar entre homens, e assim a fera começou, a pouco e pouco, a tornar-se mansa, depois a manter-se direita sobre os pés e a caminhar como os bípedes, finalmente a falar com inteligência e a agir como homem. E então, quanto podia recordar-se, contou que tinha sido raptado e alimentado pelos lobos, tendo-se depois habituado a andar à caça com eles. M. Dresser escreve esta história no livro De nova et antiqua disciplina [2] e recorda-a também Camerário nas suas Horas (t. I, Cap. 7) [3], acrescentando outra história parecida. Goularte, nas Maravilhas do nosso século, escreve que em França, em 1563, aconteceu que alguns nobres, andando à caça, e depois de haverem matado doze lobos, acabaram por apanhar, com um laço, um rapaz, de cerca de sete anos, nu, de pele amarelada e de cabeleira encrespada. Tinha as unhas aduncas como uma águia; não falava nenhuma língua, mas emitia uma espécie de mugido grosseiro. Conduzido a uma fortaleza, conseguiu-se com grande dificuldade metê-lo a ferros, de tal modo se tornara feroz; mas, submetido, durante alguns dias, às austeridades da fome, começou a amansar, e, dentro de sete meses, a falar. Levaram-no de cidade em cidade, para o apresentar como espetáculo, o que era fonte de grandes receitas para os seus proprietários. Finalmente, uma pobre mulher reconheceu-o como sendo seu filho [4]. Deste modo, vemos que é verdadeiro aquilo que Platão deixou escrito (Leis, livro 6): o homem é um animal cheio de mansidão e de essência divina, se é tornado manso por meio de uma verdadeira, educação; se, pelo contrário, não recebe nenhuma ou a recebe falsa, torna-se o mais feroz de todos os animais que a terra produz [5].
Têm necessidade de ensino:
1. os estúpidos e os inteligentes,
7. Estes fatos demonstram em geral, que a cultura é necessária a todos. Se agora lançarmos um olhar às diversas condições dos homens, verificamos o mesmo. Com efeito, quem poderá pôr em dúvida que os estúpidos tenham necessidade de instrução, para se libertarem da sua estupidez natural? Mas, na realidade, os inteligentes têm muito mais necessidade de instrução, porque a mente sutil, se não for ocupada em coisas úteis, ocupar-se-á ela mesma em coisas inúteis, frívolas e perniciosas. Com efeito, assim como um campo, quanto mais fértil é, tanto mais produz espinhos e cardos, assim também o engenho perspicaz está sempre cheio de pensamentos frívolos, a não ser que nele se semeiem as sementes da sabedoria e da virtude. E assim como, se à mó que gira não é fornecido o grão, de que é feita a farinha, ela se gasta a si mesma e inutilmente se enche de poeira, produzindo pó, com estrépito e fragor e ainda com o esfarelamento e a ruptura das partes, assim também o espírito ágil, se permanece privado de trabalhos sérios, mergulha inteiramente em coisas vãs, frívolas e nocivas, e será a causa da sua própria ruína.
2. os ricos e os pobres,
8. Que são os ricos sem sabedoria senão porcos engordados com farelo? Que são os pobres sem compreensão das coisas senão burros condenados a transportar a carga? Um homem formoso privado de cultura, que é senão um papagaio de plumagem brilhante ou, como disse alguém, uma baínha de ouro com uma espada de chumbo? [6]
3. aqueles que deverão ser postos à cabeça dos outros e aqueles que deverão ser súditos.
9. Aqueles que, alguma vez, deverão ser postos à cabeça dos outros, como os reis, os príncipes, os magistrados, os párocos e os doutores da Igreja devem embeber-se de sabedoria tão necessariamente como o guia dos viajantes deve ter olhos, o intérprete deve ter língua, a trombeta, som e a espada, gume. De modo semelhante, também os súditos devem ser esclarecidos, para que saibam obedecer prudentemente àqueles que governam sabiamente: não coagidamente, com uma sujeição asinina, mas voluntariamente, por amor da ordem. Com efeito, a criatura racional não deve ser conduzida por meio de gritos, de prisões e de bastonadas, mas pela razão. Se se procede de modo diverso, a ofensa redunda contra Deus que também neles depôs a sua imagem; e as coisas humanas estarão cheias, como de fato estão, de violências e de inquietação.
Todos, portanto, sem nenhuma exceção.
10. Fique, portanto, assente que a todos aqueles que nasceram homens é necessária a educação, porque é necessário que sejam homens, não animais ferozes, nem animais brutos, nem troncos inertes. Daí se segue também que, quanto mais alguém é educado, mais se eleva acima dos outros. Seja, portanto, o Sábio a concluir este capítulo: «Aquele que não faz caso nenhum da sabedoria e do ensino é um infeliz, as suas esperanças são vãs (ou seja, espera em vão conseguir o seu fim), infrutuosas as suas fadigas e inúteis as suas obras» (Sabedoria, 3, 11).

Capítulo VII
A FORMAÇÃO DO HOMEM
FAZ-SE COM MUITA FACILIDADE
NA PRIMEIRA IDADE,
E NÃO PODE FAZER-SE
SENÃO NESSA IDADE

O modo de desenvolver-se do homem é semelhante ao da planta.
1. Do que foi dito, é evidente que é semelhante a condição do homem e a da árvore. Efetivamente, da mesma maneira que uma árvore de fruto (uma macieira, uma pereira, uma figueira, uma videira) pode crescer por si e por sua própria virtude, mas, sendo brava, produz frutos bravos, e para dar frutos bons e doces tem necessariamente que ser plantada, regada e podada por um agricultor perito, assim também o homem, por virtude própria, cresce com feições humanas (como também qualquer animal bruto cresce com as suas feições próprias), mas não pode crescer animal racional, sábio, honesto e piedoso, se primeiramente nele se não plantam os gérmens da sabedoria, da honestidade e da piedade. Agora importa demonstrar que esta plantação deve ser feita enquanto as plantas são novas.
A formação do homem deve começar com a primeira idade:
1. por causa da incerteza da vida presente.
2. Quanto aos homens, as razões fundamentais desta necessidade são seis. Em primeiro lugar, a incerteza da vida presente, da qual é certo que se tem de sair, mas é incerto onde e quando. O perigo de alguém ser surpreendido impreparado é tão grave que não se pode afastar. Com efeito, o tempo presente foi concedido para que, durante ele, o homem ganhe ou perca para sempre a graça de Deus. Efetivamente, assim como no útero da mãe o corpo do homem se forma, de tal maneira que, se algum de lá sai com qualquer membro a menos, necessariamente ficará sem ele durante toda a vida, assim também a alma, enquanto vivemos no corpo, de tal maneira se forma para o conhecimento e para a participação de Deus, que, se algum não consegue adquiri-la neste mundo, uma vez saído do corpo, já lhe não resta nem lugar nem tempo para fazer tal aquisição. Uma vez que, portanto, se trata aqui de um negócio de tão grande importância, convém fazê-lo o mais depressa possível, para que se não seja surpreendido pela morte, antes de o haver conduzido ao fim.
2. para que seja instruído naquilo que deve fazer nesta vida, antes de começar a fazê-lo.
3. Mas, mesmo que a morte não esteja iminente e se esteja seguro de uma vida muito longa, deve, todavia, começar-se a formação muito cedo, pois não deve passar-se a vida a aprender, mas a fazer. Convém, portanto, instruir-se, o mais cedo possível, naquilo que deve fazer-se nesta vida, a fim de não sermos obrigados a partir, antes de termos aprendido o que devemos fazer. Mesmo que fosse do agrado de alguém passar toda a vida a aprender, é infinita a multidão das coisas que o Criador das mesmas coisas fez objeto de especulação agradável, de tal maneira que se a alguém fosse concedida uma vida tão longa como a Nestor, teria sempre em que a empregar de modo muito útil, investigando os tesouros da sabedoria divina espalhados por toda a parte, e adquirindo com eles apoios para a vida eterna. Deve, portanto, desde cedo, abrir-se os sentidos do homem para a observação das coisas, pois, durante toda a sua vida, ele deve conhecer, experimentar e executar muitas coisas.
3. todas as coisas formam-se muito mais facilmente, enquanto são tenras.
4. É uma propriedade de todas as coisas que nascem o fato de, enquanto são tenras, se poderem facilmente dobrar e formar, mas, uma vez endurecidas, já não obedecem. A cera mole deixa-se amassar e modelar, mas, endurecida, quebra mais facilmente. Uma arvorezinha deixa-se plantar, transplantar, podar, dobrar para aqui ou para ali, mas uma árvore já crescida de modo algum. Assim, quem quer fazer um vencelho, deve tomar um ramo verde e novo, pois não pode ser torcido um que seja velho, seco e nodoso. De ovos frescos, chocados, nascem no devido tempo os pintainhos, os quais, em vão se esperariam, de ovos ressessos. O carroceiro ensina o cavalo, o lavrador o boi, o caçador o cão e o falcão a trabalhar (assim como o homem de circo ensina o urso a bailar, e a bruxa ensina a pega, o corvo, e o papagaio a falar), mas escolhem aqueles que são muito novos, pois, se tomam os que são já velhos, perdem o tempo.
Também o homem.
5. Evidentemente, estes resultados obtêm-se, da mesma maneira, no homem cujo cerebro (que, como atras dissemos, é semelhante à cera, recebendo as imagens das coisas que lhe são transmitidas pelos sentidos), na idade infantil, é inteiramente húmido e mole e apto a receber todas as figuras que se lhe apresentam; mas depois, pouco a pouco, seca e endurece, de tal modo que nele mais dificilmente se imprimem ou esculpem as coisas, como a experiência demonstra. Daqui, a seguinte afirmação de Cícero: «as crianças apreendem rapidamente inúmeras coisas» [1]. Assim também as nossas mãos e os nossos outros membros não podem exercitar-se nas artes e nos ofícios senão nos anos da infância, em que os nervos estão tenros. Se alguém quer vir a ser bom escrivão, pintor, alfaiate, ferreiro, músico, etc., deve aplicar-se ao seu ofício desde os primeiros anos, enquanto a imaginação é ágil e os dedos flexíveis; de outro modo, nunca fará nada de bom. De modo semelhante, portanto, se se quer que a piedade lance raízes no coração de alguém, importa plantá-la nos primeiros anos; se se deseja que alguém se torne um modelo de apurada moralidade, é necessário habituá-lo aos bons costumes desde tenra idade; a quem deve fazer grandes progressos no estudo da sabedoria, importa abrir-lhe os sentidos para todas as coisas, nos primeiros anos, enquanto o seu ardor é vivo, o engenho rápido e a memória tenaz. «É coisa torpe e ridícula um velho sentado nos bancos da escola primária: ao jovem compete preparar-se; ao velho realizar-se», escreve Sêneca, na Carta, 36 [2].
4. Ao homem foi dado um longo espaço de tempo para se formar, o qual não deve ser gasto noutras coisas.
6. Para que o homem pudesse formar-se «ad humanitatem», Deus concedeu-lhe os anos da juventude, durante os quais, sendo inábil para outras coisas, fosse apto apenas para a sua formação. É certo, com efeito, que o cavalo, o boi, o elefante e todos os outros animais, de qualquer tamanho, em um ano ou dois, atingem uma estatura perfeita; o homem, porém, só o consegue em vinte ou trinta anos. Se algum, porém, julgar ter chegado a essa estatura perfeita por um mero acaso ou devido a quaisquer causas segundas, certamente despertará admiração. A todas as outras coisas, Deus fixou uma medida; só ao homem, senhor das coisas, permitiu passar o seu tempo ao acaso? Ou pensaremos que, relativamente ao homem, Deus tenha concedido à natureza a graça de proceder a passo lento, a fim de que mais facilmente possa realizar a sua formação? Ora, sem nenhuma fadiga, em alguns meses, ela forma corpos maiores. Não resta, portanto, nenhuma outra hipótese senão que o nosso Criador, com ânimo deliberado, se dignou conceder-nos a graça de retardar o nosso desenvolvimento, para que fosse mais longo o espaço de tempo para nos dedicarmos ao estudo; e tornar-nos, durante tanto tempo, inábeis para os negócios econômicos e políticos, para que, durante o restante tempo da vida (e também na eternidade), nos tornássemos mais hábeis nesses assuntos.
5. Permanece firme somente aquilo de que se embebe a primeira idade.
7. No homem, só é firme e estável aquilo de que se embebe a primeira idade; o que é evidente pelos mesmos exemplos. Um vaso de barro conserva, até que se quebre, o odor daquilo com que foi enchido quando era novo [3]. Uma árvore, da maneira como, ainda tenrinha, estendeu os ramos para cima ou para baixo, para este ou para aquele lado, assim os mantém durante cem anos, enquanto a não cortarem. A lã conserva tão tenazmente a primeira cor de que se embebeu que não há perigo de que desbote. Os arcos de uma roda, depois de endurecidos, fazem-se mais facilmente em mil pedaços do que voltam a ficar direitos. Do mesmo modo, no homem, as primeiras impressões estampam-se de tal maneira que é um autêntico milagre fazê-las tomar nova forma; por isso, é de aconselhar que elas sejam modeladas logo nos primeiros anos da vida, segundo as verdadeiras normas da sabedoria.
6. Não educar bem é uma coisa sumamente perigosa.
8. Finalmente, é uma coisa sumamente perigosa não embeber o homem, logo desde os primeiros anos, dos preceitos salutares à vida. Com efeito, porque a alma humana, apenas os sentidos externos começam a desempenhar o seu papel, de modo algum pode estar quieta, também já não pode abster-se, se não está já ocupada em coisas úteis, de se ocupar em coisas vãs de toda a espécie, e até (dados os maus exemplos do nosso século corrupto) também em coisas prejudiciais, que depois é impossível ou muito difícil desaprender, como advertimos já. Por isso, o mundo está cheio de enormidades, para fazer cessar as quais não bastam nem os magistrados políticos nem os ministros da Igreja, enquanto se não trabalhar seriamente para estancar as primeiras fontes do mal.
Conclusão.
9. Portanto, na medida em que a cada um interessa a salvação dos seus próprios filhos, e àqueles que presidem às coisas humanas, no governo político e eclesiástico, interessa a salvação do gênero humano, apressem-se a providenciar para que, desde cedo, as plantazinhas do céu comecem a ser plantadas, podadas e regadas, e a ser prudentemente formadas, para alcançarem eficazes progressos nos estudos, nos costumes e na piedade.

Capítulo VIII
É NECESSÁRIO,
AO MESMO TEMPO,
FORMAR A JUVENTUDE
E ABRIR ESCOLAS

O cuidado dos filhos diz respeito propriamente aos pais.
1. Demonstrado que as plantazinhas do paraíso, ou seja, a juventude cristã, não podem crescer à maneira de uma selva, mas precisam de cuidados, vejamos agora a quem incumbe esses cuidados. Naturalíssimamente, isso compete aos pais, de tal maneira que, assim como foram os autores da vida, sejam também os autores de uma vida racional, honesta e santa. Que para Abraão isso fosse uma obrigação solene, atesta-o Deus: «Porque eu sei que há-de ordenar a seus filhos e à sua casa, depois dele, que guardem os caminhos do Senhor, e que pratiquem a equidade e a justiça» (Gênesis, 18, 19). A mesma coisa exige Deus dos pais, em geral, ao ordenar: «Esforçar-te-ás por ensinar aos teus filhos as minhas palavras e falar-lhes-ás delas quando estiveres sentado em tua casa e quando andares pelos caminhos, quando fores para a cama e quando te levantares» (Deuteronômio, 6, 7). E pela boca do Apóstolo: «Vós, pais, não provoqueis à ira os vossos filhos, mas educai-os na disciplina e nas instruções do Senhor» (Efésios, 6, 4).
São-lhes dados, todavia, como auxiliares, os professores das escolas.
2. Todavia, porque, tendo-se multiplicado tanto os homens como os afazeres humanos, são raros os pais que, ou saibam, ou possam, ou pelas muitas ocupações, tenham tempo suficiente para se dedicarem a educação de seus filhos, desde há muito, por salutar conselho [1], se introduziu o costume de muitos, em conjunto, conconfiarem a educação de seus filhos a pessoas escolhidas, notáveis pela sua inteligência e pela pureza dos seus costumes. A esses formadores da juventude, é costume dar o nome de preceptores, mestres, mestres-escola e professores; os locais destinados a esses exercícios comuns recebem o nome de escolas, institutos, auditórios, colégios, ginásios, academias, etc.
Origem e desenvolvimento das escolas.
3. José atesta [2] que o primeiro a abrir escola, imediatamente a seguir ao Dilúvio, foi o patriarca Sem, a qual depois foi chamada escola judaica. E quem não sabe que na Caldéia, principalmente na Babilônia, havia numerosas escolas, onde se cultivavam tanto outras ciências e artes como a astronomia? É sabido, com efeito, que, depois (no tempo de Nabucodonosor), nessa sabedoria dos Caldeus foram instruídos Daniel e os seus companheiros (Daniel, 1, 20). Havia-as também no Egito, onde foi educado Moisés (Atos dos Apóstolos, 7, 22). No povo de Israel, por ordem de Deus, em todas as cidades foram construídas escolas, chamadas sinagogas, onde os levitas ensinavam a Lei, as quais duraram até ao tempo de Cristo, tornando-se célebres pela pregação d’Ele e dos Apóstolos. Dos egípcios, os gregos, e destes, os romanos receberam o costume de fundar escolas; a partir dos romanos, espalhou-se o louvável costume de abrir escolas por todo o Império, principalmente, após a propagação da religião de Cristo, pela solicitude fiel de príncipes e bispos piedosos. Acerca de Carlos Magno, atesta a história que, à medida que ia submetendo cada povo pagão, logo lhe enviava bispos e professores, e erigia templos e escolas. Seguiram o seu exemplo outros imperadores cristãos, reis, príncipes e governadores de cidades; e de tal modo aumentaram o número das escolas que estas se tornaram inumeráveis.
Explica-se que, finalmente, devem ser abertas escolas por toda a parte.
4. Que este santo costume se deve, não apenas manter, mas até aumentar, interessa a toda a Cristandade, a fim de que em toda e qualquer comunidade de homens bem ordenada (quer seja cidade, ou vila ou aldeia), se construa uma escola para a educação comum da juventude. Exige-o, com efeito:
1. o decoro da ordem que deve ser observada por toda a parte,
5. A ordem louvável das coisas. Com efeito, se um pai de família não tem disponibilidade para fazer tudo o que a administração dos negócios domésticos exige, mas se serve de vários empregados, porque não há-de fazer o mesmo no nosso caso? Na verdade, quando ele tem necessidade de farinha, dirige-se ao moleiro; quando tem necessidade de carne, ao carniceiro; quando tem necessidade de bebidas, ao taberneiro; quando tem necessidade de um fato, ao alfaiate; quando tem necessidade de calçado, ao sapateiro; quando tem necessidade de uma casa, de uma relha do arado, de um prego, etc., dirige-se ao marceneiro, ao pedreiro, ao ferreiro, etc. Uma vez que, para instruir os adultos na religião, temos os templos; para discutir as causas em litígio, e para convocar o povo e para o informar acerca das coisas necessárias, temos os tribunais e os parlamentos, porque não havemos de ter escolas para a juventude? Além disso, nem sequer os camponeses apascentam, cada um por si, os seus porcos e as suas vacas, mas contratam pastores assalariados que servem ao mesmo tempo a todos, dedicando-se eles, entretanto, com menos distrações, aos seus outros negócios. Na verdade, há uma grande economia de fadiga e de tempo, quando uma só pessoa faz uma só coisa, sem ser distraída por outras coisas; deste modo, com efeito, uma só pessoa pode servir utilmente a muitas, e muitas podem servir a uma só.
2. a necessidade,
6. Em segundo lugar, a necessidade. Porque, com efeito, raramente os pais estão preparados para educar bem os filhos, ou raramente dispõem de tempo para isso, daí se segue como conseqüência que deve haver pessoas que façam apenas isso como profissão e desse modo sirvam a toda a comunidade.
3. a utilidade,
7. E mesmo que não faltassem pais a quem fosse possível dedicar-se inteiramente à educação dos seus filhos, seria, todavia, muito melhor educar a juventude em conjunto, num grupo maior, porque, sem dúvida, o fruto e o prazer do trabalho é maior, quando uns recebem exemplo e incitamento de outros. Com efeito, é naturalíssimo fazer o que fazem os outros, ir onde vemos ir os outros, seguir os que vão à frente e ir à frente dos que vêm atrás.
Aberto o curral, tanto melhor corre o forte cavalo, quanto tem a quem passar à frente e a quem seguir [3].
Além disso, a idade infantil conduz-se e governa-se muito melhor com exemplos que com regras. Se se lhe ordena alguma coisa, pouco se interessará; se se lhe mostra os outros a fazer alguma coisa, imitá-los-á, mesmo que lho não ordenem.
4. os exemplos constantes da natureza
8. Finalmente, a natureza dá-nos, por toda a parte, o exemplo de que aquelas coisas que devem crescer abundantemente devem ser criadas em um só lugar. Assim, as árvores nas florestas, as ervas nos campos, os peixes nas águas, os metais nas profundidades da terra, etc., nascem em grupos. E isso de tal maneira que, em geral, a floresta que produz pinheiros ou cedros ou carvalhos, produ-los abundantemente, enquanto que as outras espécies de árvores nela se não desenvolvem igualmente bem; a terra que produz ouro, não produz, com a mesma abundância, os outros metais. Todavia, aquilo que queremos dizer encontra-se ainda mais bem expresso no nosso corpo, onde é necessário que cada membro receba uma parte do alimento que se toma, e todavia não se dá a cada um a sua porção ainda crua para que a prepare e adapte a si, mas há determinados membros, que são como que oficinas destinadas a esse trabalho, os quais, para utilidade de todo o corpo, recebem os alimentos, fazem-nos fermentar, digerem-nos e, finalmente, distribuem o alimento assim preparado pelos outros membros. Assim, o estômago forma o quilo, o fígado o sangue, o coração o espírito vital, e o cérebro o espírito animal, os quais, já preparados, difundem-se facilmente por todos os membros e conservam agradavelmente a vida em todo o corpo. Porque é que, portanto, não se há-de crer que, do mesmo modo que as oficinas reforçam e regulam os trabalhos, os templos a piedade, os tribunais a justiça, assim também as escolas produzem, depuram e multiplicam a luz da sabedoria e a distribuem a todo o corpo da comunidade humana?
5. e da arte
9. Finalmente, nas coisas artificiais, todas as vezes que se procede racionalmente, observamos o mesmo. É certo que o sivicultor, girando pelas florestas e pelos pinhais, não planta os mergulhões por toda a parte onde os encontra próprios para a plantação, mas arranca-os e transporta-os para um viveiro e trata-os juntamente com centenas de outros. Do mesmo modo, quem se ocupa em multiplicar os peixes para uso da cozinha, constrói um viveiro, onde os faz multiplicar, todos juntos, aos milhares. E quanto maior é a plantação, tanto melhor costumam crescer as plantas; e quanto maior é o viveiro, tanto maiores se tornam os peixes. Ora, assim como se devem fazer viveiros para os peixes e plantações para as plantas, assim se devem construir escolas para a juventude.

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