DIDÁTICA MAGNA
COMENIUS
Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos
ou
Processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer Reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e de outro sexo, sem excetuar ninguém em siveiarte alguma, possa ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos da puberdade, instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura, com economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez.
Onde os fundamentos de todas as coisas que se aconselham são tirados da própria natureza das coisas; a sua verdade é demonstrada com exemplos paralelos das artes mecânicas; o curso dos estudos é distribuído por anos, meses, dias e horas; e, enfim, é indicado um caminho fácil e seguro de pôr estas coisas em prática com bom resultado.
A proa e a popa da nossa Didática será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atrativo e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos confusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranqüilidade.
(COMENIUS ESCREVEU VISANDO TAMBÉM QUE OS CRISTÃOS VIVEM MAIS INTENSAMENTE O CRISTIANISMO, APRENDESSE PARA VIVER O QUE CONHECEU. O LIVRO DE COMENIUS TAMBÉM VISAVA CRIAR METODOS QUE TORNASSE O TRABALHO DO PROFESSOR MENOS DESGASTANTE E QUE OS ALUNOS PUDESSEM RETER MAIS CONHECIMENTO. )
Que Deus tenha piedade de nós e nos abençoe! Faça brilhar sobre nós a luz da sua face e tenha piedade de nós! Para que sobre esta terra possamos conhecer o teu caminho, ó Senhor, e a tua ajuda salutar a todas as gentes (Salmo 66, 1-2).
(A CONSTANTE CITAÇÃO DE TEXTOS BÍBLICOS NOS FAZ ACREDITAR QUE A OBRA DE COMENIU NÃO É SOMENTE UMA OBRA SOBRE DIDÁTICA SECULAR, MAS UMA OBRA TEOLÓGICA. ASSIM CONSIDERO UMA OBRA TEOLÓGICA, QUANDO ELA TEM COMO EPICENTRO OU REFERÊNCIA A PALAVRA DE DEUS.)
SAUDAÇÃO AOS LEITORES
1. Didática significa arte de ensinar. Acerca desta arte, desde há pouco tempo, alguns homens eminentes, tocados de piedade pelos alunos condenados a rebolar o rochedo de Sísifo, puseram-se a fazer investigações, com resultados diferentes.
(COMENIUS DEFINIU A DIDÁTICA COMO UMA ARTE DE SIMPLESMENTE ENSINAR, A PALAVRA DIDATICA É DE ORIGEM GREGA E SIGNIFICA ENSINAR)
2. Alguns esforçaram-se por arranjar compêndios apenas para ensinar mais facilmente, esta ou aquela língua. Outros procuraram encontrar os métodos mais breves para ensinar, mais rapidamente, esta ou aquela ciência ou arte. Outros fizeram outras tentativas. Quase todos por meio de algumas observações externas recolhidas com o método mais fácil, ou seja, com o método prático, isto é, a posteriori, como lhe chamam.
(TODO PROFESSOR USA UM METODO PARA ENSINAR, OS METODOS SÃO VARIÁVEIS, MAS ALGUM TIPO DE METODO É APLCADO. ALGUNS ENSINADORES PREGUIÇOSOS PROCURAM O CAMINHO MAIS FÁCIL E NÃO MAIS EFICAZ.)
2. Nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, um método universal de ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza, que seja impossível não conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado e sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com sumo prazer para uns e para outros. E de ensinar solidamente, não superficialmente e apenas com palavras, mas encaminhando os alunos para uma verdadeira instrução, para os bons costumes e para a piedade sincera. Enfim, demonstraremos todas estas coisas a priori, isto é, derivando-as da própria natureza imutável das coisas, como de uma fonte viva que produz eternos arroios que vão, de novo, reunir-se num único rio; assim estabelecemos um método universal de fundar escolas universais.
( COMENIUS FOI BASTANTE VISIONÁRIO AO PROMETER UM METODO UNIVERSAL CAPAZ DE ENSINAR TUDO A TODOS)
4. Na verdade, a promessa que fazemos é enorme e corresponde a um desejo muito vivo, mas podemos facilmente imaginar que haverá pessoas que nela verão mais um sonho que um propósito fundado na realidade. No entanto, quem quer que tu sejas, leitor, suspende o teu juízo, até que tenhas conhecido a substância das coisas; então terás a liberdade, não somente de julgar, mas também de te pronunciares. Com efeito, eu não desejo, para não dizer que não ambiciono, arrastar ninguém, com os artifícios da persuasão, a dar o seu assentimento a uma coisa que não oferece qualquer certeza. Mas, com toda a alma, advirto, exorto e suplico, a quem quer que olhe o nosso trabalho, que nele fixe o seu próprio olhar e que o fixe com toda a sua penetração, pois é o único meio de se não deixar perturbar pelas opiniões fascinantes de outrem.
( O AUTOR APELA PARA QUE OS LEITORES DA SUA OBRA ABRAM A MENTE PARA APRENDER O SEU METODO REVOLUCIONÁRIO)
5. O assunto é realmente da mais séria importância e, assim como todos devem augurar que ele se concretize, assim também todos devem examiná-lo com bom senso, e todos, unindo as suas próprias forças, o devem impulsionar, pois dele depende a salvação de todo o gênero humano. Que presente mais belo e maior podemos nós oferecer à Pátria que o de instruir e educar a juventude, principalmente quando, pelos costumes e pelas condições dos tempos atuais, a juventude, como diz Cícero [1], entrou num tal caminho que, com os esforços de todos, deve ser travada e refreada? Filipe Mclanchton, com efeito, escreveu que a educação perfeita da juventude é coisa um pouco mais difícil que a tomada de Tróia [2]. E S. Gregório Nazianzeno pensa da mesma maneira quando diz:
( COMENIUS CITA MCLANCHTON QUE DISSE QUE A EDUCAÇÃO PERFEITA DA JUVENTUDE É MAIS DIFÍCIL DO QUE CONQUISTAR TRÓIA)
isto é, a arte das artes está em formar o homem, o qual é o mais versátil e o mais complexo de todos os animais [3].
6. Ensinar a arte das artes é, portanto, um trabalho sério e exige perspicácia de juizo, e não apenas de um só homem, mas de muitos, pois um só homem não pode estar tão atento que lhe não passem desapercebidas muitíssimas coisas.
(ENSINAR É FORMAR O HOMEM, A EDUCAÇÃO É ESSENCIAL PARA FORMAR O CARÁTER )
7. É por isso que, com razão, peço aos meus leitores, mais ainda, em nome da salvação do gênero humano, suplico a todos aqueles que tiverem ocasião de lançar um olhar sobre a minha obra: primeiro, que não imputem à presunção o fato de ter havido alguém que, não apenas tenha tentado, mas ousado prometer levar a bom termo tão grande empresa, pois esta foi empreendida com um objetivo salutar. Segundo, que não desesperem se a experiência não resultar logo ao primeiro ensaio, e não der completamente os resultados desejados. É necessário, com efeito, que primeiro germinem as sementes das coisas; estas virão a seguir, gradualmente, segundo a sua natureza. Por mais imperfeita que seja a minha tentativa e não chegue a atingir o objetivo que eu me havia proposto, o meu exemplo trará, todavia, ao menos, a prova de que foi percorrida uma longa etapa que jamais havia sido percorrida e que o cume a escalar está mais próximo que até aqui. Enfim, peço aos meus leitores que prestem atenção, sejam corajosos e julguem com liberdade e perspicácia, como convém nas coisas da máxima importância. Dito isto, é meu dever, por um lado, indicar em poucas palavras aquilo que me proporcionou a ocasião de empreender este trabalho, e, por outro lado, resumir as principais características das novidades que ele contém, antes de o entregar, com inteira confiança, à boa fé e às ulteriores investigações de todos aqueles que julgam com sensatez.
(APLICAR A ARTE DE ENSINAR EXIGE PACIÊNCIA DOS MESTRES, POIS OS RESULTADOS NÃO VIRAM DE IMEDIATO)
8. Esta arte de ensinar e de aprender, levada ao ponto de perfeição que parece agora esforçar-se por atingir, foi, em boa parte, desconhecida nos séculos passados e, por esse fato, os estudos e as escolas curvavam ao peso de fadigas e de caprichos, de hesitações e de ilusões, de erros e de faltas, de tal maneira que apenas podiam adquirir, à força de lutar, uma instrução sólida, aqueles que tinham a felicidade de possuir uma inteligência divina.
(CONFORME COMENIUS, QUANDO O METODO DE ENSINO NÃO É EFICAZ, MESMO ASSIM OS ALUNOS BRILHANTES CONSEGUEM UMA INSTRUÇÃO SÓLIDA)
9. Mas, desde há algum tempo, Deus começou a propiciar-se do século nascente, verdadeiramente novo, direi quase uma aurora, e suscitou, na Alemanha, alguns homens de bem que, desgostosos com a confusão dos métodos utilizados nas escolas, se puseram a investigar um método mais curto e mais fácil para ensinar as línguas e as artes; depois dos primeiros vieram outros, e precisamente por isso alguns obtiveram sucesso maior que outros, como se revela evidente pelos livros e ensaios didáticos por eles publicados.
(SEGUNDO COMENIUS DEUS PROPICIOU A ALEMANHA O SURGIMENTO DE HOMENS VOLTADO A ARTE DO ENSINO. DE FATO DEVEMOS A ALEMANHA O TRIBUTO DE HONRA POR HOMENS COMO GUTTEMBERG QUE INVENTOU A IMPRENSA E POR LUTERO QUE DIFUNDIU A DOUTRINA DO LIVRE PENSAMENTO E DO DIREITO DO HOMEM LER E ENTENDER A BIBLIA INDEPENDENTE DA INTERPRETAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA QUE TINHA O MONPÓLIO SOBRE O PENSAMENTO)
10. Quero referir-me a Ratke [4], Lubin [5], Helwig [6], Ritter [7], Bodin [8], Glaum [9], Vogel [10], Wolfstirn [11] e àquele que deveria ser nomeado entre os primeiros, João Valentim Andrea [12] (o qual, assim como pôs a claro os males da Igreja e do Estado, assim também, aqui e além, nos seus escritos puros como ouro, mostrou os males das escolas e, em vários lugares, indicou os remédios), e a outros, se os há, os quais nos são ainda desconhecidos. A própria França começou a rebolar esse rochedo, quando Jean-Cécile Frey [13] publicou, em Paris, em 1629, uma excelente didática, sob o título Novo e rapidíssimo método que conduz às ciências divinas, às artes, às línguas e aos discursos improvisados.
(COMENIUS LISTOU OS NOMES DE ALGUNS ILUSTRES PERSONAGENS QUE CONTRIBUIRAM PARA A EVOLUÇÃO DA DIDÁTICA, DANDO ENFASE A JOÃO VALENTIM ANDREA QUE EXPOS AS MAZELAS DO ESTADO E DA IGREJA)
11. Tendo-se-me apresentado a ocasião de toda a parte, pus-me a ler os livros desses escritores; e se dissesse quanto prazer experimentei e como foram grandemente aliviadas as dores em mim provocadas pela ruína da minha pátria e pelo triste estado de toda a Germânia, ninguém me acreditaria. Comecei, na verdade, a esperar que a Providência divina não fazia coincidir em vão todos esses infortúnios, uma vez que, à ruína das velhas escolas correspondia, ao mesmo tempo, a eclosão de escolas novas no quadro de projetos novos. Com efeito, quem projeta construir um novo edifício começa habitualmente por aplanar o terreno, indo até à demolição do velho edifício, pouco cômodo e a ameaçar ruína.
(O NOVO METODO DE ENSINO EXIGIRIA DESVINCULAR-SE DOS ANTIGOS METODOS )
12. Este pensamento despertava em mim uma bela esperança acompanhada de um doce prazer; mas, a seguir, apercebi-me de que, pouco a pouco, a esperança se diluía, uma vez que, querendo desentulhar o terreno completamente, de baixo até cima, julgava não ser capaz de tão grande empresa.
13. Por isso, desejando possuir informações mais completas sobre certos pontos e dar a minha opinião sobre alguns outros, escrevi a um, a um outro e depois a um terceiro dos autores atrás citados, mas em vão, pois, por um lado, quase todos guardaram ciosamente segredo a respeito das suas descobertas e, por outro lado, as minhas cartas foram-me devolvidas sem resposta, porque os destinatários eram desconhecidos no endereço indicado.
14. Só um deles, o eminente J. V. Andrea, me respondeu, dizendo que, de bom grado, me daria quaisquer esclarecimentos, e encorajando a ousadia do meu empreendimento. Foi assim que, picado, por assim dizer, pela espora, me pus de novo a pensar mais freqüentemente neste trabalho e que, finalmente, um ardente amor do bem público me obrigou a tentar a empresa, começando pelos fundamentos.
(A FRASE:”ARDENTE AMOR AO BEM PÚBLICO!” É O QUE CARACTERIZA OS HOMENS QUE AJUDAM A MELHORAR A HUMANIDADE, OS HEROIS ENTRE OS HOMENS SÃO AQUELES QUE BUSCAM O BEM DO PRÓXIMO SEM ESPERAR RETRIBUIÇÃO.)
"COMENIUS FOI O PAI DA DIDÁTICA", SE PREOCUPOU COM A EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS.
15. Postas, portanto, de lado as descobertas, as opiniões, as observações e as advertências dos outros, decidi-me a refazer tudo por mim mesmo e a examinar o assunto e a procurar as causas, os métodos, os processos e os fins daquilo que, com Tertuliano [14], chamamos, se isso nos é licito, aprendizagem (discentia).
(A BUSCA DO SABER E DA VERDADE, É UMA BUSCA INTERIOR QUE ALGUNS HOMENS ILUMINADOS POR DEUS, PROCURAM NA NATUREZA ENCONTRAR RESPOSTAS PARA AS SUAS PERTUBAÇÕES INTERIORES. É ISSO QUE CARACTERIZA OS GRANDES PENSADORES, LÍDERES E CIENTISTAS DA HUMANIDADE)
16. Dai nasceu este meu tratado, onde o tema é, assim o espero, desenvolvido mais longamente e mais claramente do que nunca o foi até ao presente. Escrito inicialmente em vernáculo, para uso do meu povo, sai agora, a conselho de alguns homens eminentes, vertido em latim, para que, se possível, aproveite a todos.
( ORIGINALMENTE O “DIDÁTICA MAGNA” FOI ESCRITO EM ALEMÃO, IDIOMA DO AUTOR E POSTEIORMENTE TRADUZIDO PARA O LATIM QUE ERA A LINGUA DOS ERUDITOS)
17. Com efeito, a caridade manda que o que Deus manifestou para salvação do gênero humano (assim fala o eminente Lubin da sua Didática [15], se não esconda dos mortais, mas se manifeste a todo o mundo. Efetivamente, é da natureza de todos os bens (continua o mesmo Lubin) que sejam comunicados a todos; e quanto mais é a riqueza e se põe em comum, tanto melhor é e tanto mais cabe a todos.
(O CONHECIMENTO DEVE SER DISSEMIDADO A TODOS E NÃO DEVE SER RESTRITO APENAS PARA “INICIADO” COM FAZEM ALGUMAS RELIGIÕES).
18. É também uma lei de humanidade que, se se conhece qualquer meio de ir em auxilio do próximo para o tirar das suas dificuldades, não se deve hesitar; sobretudo quando se trata, não de um homem só, mas de muitos, e não apenas de muitos homens, mas de muitas cidades, províncias e reinos e, digo até, do gênero humano inteiro, como é o caso presente.
( COMENIUS DEFENDE QUE AS COISAS BOAS DEVEM SER DIFUNDIDA PARA TODA A HUMANIDADE, VEMOS QUE MUITAS DESCOBERTAS CIENTÍFICAS MUITAS VEZES TEVE SUAS FÓRMULAS MANTIDA EM SECRETO PARA PODER GERAR LUCRO AO DETENTOR DE DETERMINADA TECNOLOGIA, É OBVIO QUE AQUELE HOMEM E EMPRESA QUE DEDICOU A PESQUISA DEVE SER JUSTAMENTE RECOMPENSADO PELAS DESCOBERTAS, MAS A GANANCIA NÃO PODE PRIVAR OS DEMAIS HOMENS DE SE BENEFICAR DA CIÊNCIA)
19. Se, todavia, houver algum espírito tão impertinente que pense que é coisa estranha à vocação de um teólogo estudar os problemas escolares, saiba que esse escrúpulo pesou tão fortemente sobre o meu coração a ponto de o fazer sangrar. Apercebi-me, porém, de que não poderia libertar-me dele de outra maneira senão prestando homenagem a Deus e pedindo publicamente conselho a todos acerca de tudo aquilo que uma intuição divina me sugeriu.
( A MISSÃO DO TEÓLOGO NÃO LIMITA-SE SOMENTE A TRATAR DE DEUS, MAS A RELAÇÃO DE DEUS COM O UNIVERSO E DE RETRATAR QUAL É A VONTADE DE DEUS PARA A HUMANIDADE E QUAL O PROPÓSITO DE TODAS AS COISAS. DAÍ QUE SER TEÓLOGO É TER UMA VISÃO PANORAMICA DE TODAS AS CIÊNCIAS, PORQUE DEUS É CRIADOR DE TUDO E NELE RESIDE A INFORMAÇÃO COMPLETA SOBRE TUDO E TODOS)
20. Deixai-me, ó almas cristãs, falar-vos com toda a confiança! Quem me conhece muito de perto sabe muito bem que sou homem de fraca inteligência e quase de nenhuma instrução; e sabe também que choro os infortúnios da nossa época e desejo vivamente suprir, se isso é possível, quer com as minhas invenções, quer com as dos outros (todas as invenções derivam, de resto, do nosso bom Deus), a tudo o que nos falta de mais importante.
( AO SE DEFINIR COMO HOMEM DE FRACA INTELIGÊNCIA, COMENIUS MOSTRA A PRINCIPAL CARACTERISTICA DO SÁBIO: “saber que não sabe nada”. SÁBIO É AQUELE QUE MANTÉM UMA POSIÇÃO HUMILDE SOBRE A CIÊNCIA, PORQUE NENHUMA MENTE HUMANA TERÁ RESPOSTA PARA TUDO).
21. Se, portanto, encontrei agora alguma boa idéia, ela não deve ser minha, mas d’Aquele que costuma obter louvores da boca das crianças [16], e que, para se mostrar de fato fiel, veraz e benigno, dá a quem pede, abre a quem bate e oferece a quem procura (Luc., II, 9), porque até nós cumulamos de dons aqueles por quem deles fomos também cumulados. O meu Cristo sabe que tenho um coração tão simples que não há para mim diferença alguma entre ensinar e ser ensinado, advertir e ser advertido, entre ser mestre dos mestres (se me é lícito falar assim) e discípulo dos discípulos (se acaso posso esperar algum progresso).
( ESTA É A VERDADEIRA EVOLUÇÃO DO HOMEM, A EVOLUÇÃO INTERIOR, A VERDADEIRA CIÊNCIA TORNA O HOMEM HUMILDE, A FALSA O ENCHE DE SOBERBA, FAZENDO COM QUE ELE PENSA SER DE FATO ALGUMA COISA IMPORTANTE, QUEM DERA EM NÓS HAJA O MESMO CORAÇÃO A QUAL COMENIUS DIVULGAVA E QUE ERA CAPAZ DIZER QUE TINHA UM CORAÇÃO TÃO SIMPLES QUE NÃO VIA DIFERENÇA ENTRE ENSINAR E SER ENSINADO, ENTRE ADVERTIR E SER ADVERTIDO).
22. Por isso, as observações que o Senhor me concedeu fazer, eis que as ponho em público e em comum com todos.
( COMENIUS CHAMA OS SEUS ENSINOS DE MERA “OBSERVAÇÕES”, NÃO CHAMANDO PARA SI O TÍTULO DE “DOGMA” QUE É ALGO MAIS PETRIFICADO, IMUTÁVEL.)
23. Se alguém encontrar melhor, faça o mesmo, para não ser acusado pelo Senhor de colocar os seus dinheiros no cofre e de os esconder, pois o Senhor quer que os seus servos negoceiem, para que os dinheiros de cada um deles, postos no banco, rendam outros dinheiros (Luc., 19).
(SURPREENDE-ME A HUMILDADE DE COMENIUS, A QUAL NÃO ATRIBUI A SUA OBRA, A ÚLTIMA PALAVRA, MAS QUE AQUELES QUE DESCOBRIREM MELHORES CAMINHO PARA A DIDÁTICA QUE AS DIVULGE, SOB PENA DE GUARDAR TESOUROS A QUAL DEVERIA TER COLOCADO PARA GERAR MAIS RIQUEZAS NO MERCADO DO CONHECIMENTO).
É lícito, foi lícito e sempre será lícito procurar as coisas grandes. E nunca será em vão o trabalho começado em nome do Senhor.
A TODOS AQUELES QUE PRESIDEM ÀS COISAS HUMANA,
AOS MINISTROS DE ESTADO, AOS PASTORES DAS IGREJAS,
AOS DIRETORES DAS ESCOLAS, AOS PAIS E AOS TUTORES,
SEJA DADA A GRAÇA E A PAZ DE DEUS, PAI DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, NO ESPÍRITO SANTO
( COMENIUA ENUMERA OS LIDERES POLÍTICOS, RELIGIOSOS, PROFESSORES PAIS E LIDERES EM GERAL COMO OS QUE PRESIDEM AS COISAS RELATIVA A HUMANIDADE).
As duas mais excelentes obras da criação: o paraíso e o homem.
1. Deus, no princípio do mundo, criou o homem, plasmando-o com a terra, e colocou-o num paraíso de delícias, por Ele plantado no Oriente, não só para que o guardasse e cultivasse (Gênesis, 2, 15), mas também para que ele próprio fosse para o seu Deus um jardim de delícias.
( O PARAÍSO E A HUMANIDADE SÃO AS MELHORES COISAS QUE DEUS CRIOU, SEGUNDO COMENIUS, OBSERVO QUE TAIS ASPECTOS DA CRIAÇÃO SE REFIRA APENAS A CRIAÇÃO VISÍVEL, MESMO ASSIM HÁ MARAVILHAS INFINITAS AO OBSERVARMOS O MICRO MUNDO (DA ORGANIZAÇÃO CELULAR) E O MACRO MUNDO ( DO UNIVERSO CELESTE).
Comparação entre o homem e o paraíso.
2. Na verdade, assim como o paraíso era a parte mais amena do mundo, assim o homem era a mais amada das criaturas. O paraíso foi plantado a Oriente; o homem, à imagem d’Aquele que teve origem desde o princípio, desde os dias da eternidade. No paraíso, cresceram todas as plantas belas para serem vistas, e deliciosas para serem comidas, escolhidas entre todas aquelas que estavam espa1hadas, aqui e além, por toda a terra; no homem, foram acumulados, por assim dizer, como num só monte, todos os elementos do mundo, todas as formas e todos os graus das formas, para que manifestasse toda a arte da divina sabedoria. O paraíso tinha a árvore da ciência do bem e do mal; o homem tem a mente para distinguir e a vontade para escolher o que existe de bem ou de mal. No paraíso, existia a árvore de vida; no homem, existe também a árvore da imortalidade, ou seja, a sabedoria de Deus, a qual colocou no homem raízes eternas (Eclesiástico, I, 16). Desse lugar de delícias, saía um rio, que regava o paraíso e depois se dividia em quatro ramos principais (Gênesis, 2, 10); no coração do homem, confluem vários dons do Espírito Santo, que vão irrigá-lo, e depois, do seu seio, brotam rios de água viva (S. João, 7, 38), isto é, no homem e por obra do homem, difunde-se, de vários modos, a sabedoria de Deus, como rios que se derramam em todas as direções. Isto é atestado também pelo Apóstolo, quando afirma que, por meio da Igreja, se torna manifesta aos principados e às potestades dos céus a multiforme sabedoria de Deus (Efésios, 3, 10).
(COMENIUS COMPARA O HOMEM AO PARAÍSO, O MELHOR DA NATUREZA MINERAL, VEGETAL E ANIMAL EM SEMELHANÇA AO HOMEM QUE REFLETE DEUS, INTERESSANTE ESTA COMPARAÇÃO DE COMENIUS, A TRÊS ANOS ATRÁS EU PLANTEI UM JARDIM DE 12 MIL METROS QUADRADOS E PASSEI A CULTIVAR A CADA 15 DIAS, ONDE PASSO O FIM DE SEMANA. ALI TENHO PLANTADO PELO MENOS UM EXEMPLAR DE CADA ÁRVORE FRUTÍFERA QUE CONSIGO A MUDA, E POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, ESTE CONTANTO COM A NATUREZA E NA COMTEMPLAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DAS ÁRVORES ATÉ O PONTO DELAS FRUTIFICAREM ME TEM FEITO SE APROXIMAR MAIS DE DEUS ).
"educar uma criança, é como plantar uma árvore, os frutos demoram a aparecer, mas é compensador"
3. Verdadeiramente, portanto, cada homem é para o seu Deus um paraíso de delícias, se se mantém no lugar que lhe foi marcado. De modo semelhante, também a Igreja, que é a comunidade de todos os homens consagrados a Deus, é, muitas vezes, comparada, na Sagrada Escritura, ao paraíso, ao jardim e à vinha de Deus.
(DEUS, HOMEM E UNIVERSO, ESTAS TRÊS PARTES DA VIDA, JÁ FORAM INTIMAMENTES LIGADAS UMA AS OUTRAS)
Perda de ambos os paraísos
4. Mas que desventura foi a nossa! Estávamos no paraíso das delícias corporais, e perdemo-lo; e, ao mesmo tempo, perdemos o paraíso das delícias espirituais, que éramos nós mesmos. Fomos expulsos para as solidões da terra, e tornamo-nos nós próprios uma solidão e um autêntico deserto escuro e esquálido. Com efeito, fomos ingratos para com aqueles bens, dos quais, no paraíso, Deus nos havia cumulado com abundância relativamente à alma e ao corpo; merecidamente, portanto, fomos despojados de uns e de outros, e a nossa alma e o nosso corpo tornaram-se o alvo das desgraças.
(COM A CORRUPÇÃO DA NATUREZA HUMANA, PERDEMOS A HARMONIA COM A NATUREZA E COM DEUS, NOS DIZERES DE COMENIUS, FICAMOS NA SOLIDÃO).
Deus lamenta-se disso.
5. Acerca destes fatos, ouçamos um profeta, que fala alegoricamente a um rei de Tiro, soberbo e condenado a ser punido pela sua soberba: «Tu vivias no meio das delícias do paraíso de Deus; e o teu vestido estava ornado de toda a casta de pedras preciosas: o sárdio, o topázio, o jaspe, o crisólito, a cornelina, o berilo, a safira, o carbúnculo, a esmeralda, juntamente com objetos de ouro. Tímpanos e gaitas de foles foram preparados, no dia em que foste feito rei, para tocarem em tua honra. Tu eras um querubim e por isso te ungi como protetor (senhor das outras criaturas); por isso te fiz chefe; vivias no monte santo de Deus e caminhavas no meio de pedras preciosas incessantemente flamejantes. Andando pelos teus caminhos, eras perfeito desde o dia da tua assunção ao reino, até que foi encontrada em ti a iniquidade! Na multidão das tuas traficâncias, as tuas vísceras encheram-se de iniquidade e cometeste pecados. Por isso te expulsei do monte de Deus, te entreguei à ruína, etc. Quando o teu coração se encheu de soberba com a tua magnificência, tu perdeste a sabedoria, e eu lancei-te por terra, etc.» (Ezequiel, 28, 12 e ss.). Num momento da sua justa indignação, lançou-nos por terra e expulsou-nos, e assim, embora fôssemos como um jardim do Éden, doravante tornamo-nos como uma solidão do deserto.
( O TEXTO CITADO POR COMENIUS É UMA COMPARAÇÃO ENTRE O REI DE TIRO E LÚCIFER, AMBOS CAIRAM DE UM ESTADO DE DELÍCIAS PARA UM DESGRAÇA, EM AMBOS OS CASOS A SOBERBA PRECEDE A QUEDA).
Reconquista do nosso paraíso por meio da graça de Deus.
6. Seja glorificado e louvado e honrado e bendito para sempre o nosso misericordioso Deus que, embora nos tenha abandonado por um certo tempo, todavia, não nos deixou na solidão eternamente; pelo contrário, manifestando a sua sabedoria, mediante a qual delineou o céu e a terra e todas as outras coisas, com a sua misericórdia fortificou, de novo, o seu abandonado paraíso, ou seja, o gênero humano; e assim, com o machado e a serra e a foice da sua lei, cortadas pelo pé e podadas as árvores meio mortas e secas do nosso coração, aí plantou novos rebentos escolhidos no paraíso celeste; e para que estes pudessem pegar e crescer, irrigou-os com o seu próprio sangue, e nunca mais deixou de os regar com vários dons do seu Espírito Santo, que são como que arroios de água viva; e mandou também os seus operários, jardineiros espirituais, a tratar com cuidado fiel a nova plantação de Deus. Efetivamente, assim fala Deus a Isaías e, na pessoa dele, a outros: «Pus as minhas palavras na tua boca e protegi-te com a sombra da minha mão, para que plantes os céus e fundes a terra e digas a Sião: o meu povo és tu» (Isaías, 51, 16).
A Igreja reverdece o paraíso.
7. Verdeja, portanto, outra vez, o jardim da Igreja, delícia do coração divino, como de novo diz Isaías (51, 3): «O Senhor consolará, pois, Sião, e consolará todas as suas ruínas; e transformará o seu deserto num lugar de delícias e a sua solidão num jardim do Senhor. Ai haverá gozo e alegria, ação de graças e vozes de louvor». E em Salomão: «Jardim completamente fechado, irmã minha, minha esposa; jardim completamente fechado, fonte selada. As tuas plantas formam um jardim de delícias cheio de toda a qualidade de romãs, de frutos de cipre e de nardo, etc.» (Cântico dos Cânticos, 4, 12-13). Responde-lhe a esposa, a Igreja: «Tu, a fonte dos jardins, o poço das águas vivas, que com ímpeto correm do Líbano! Levanta-te, aquilão, e vem tu, vento do meio-dia, assopra de todos os lados no meu jardim, e espalhem-se os seus aromas. Que o meu amado venha para o jardim e coma as suas frutas preciosas» (Ibid., 15, 16 e 17).
(DEUS SEMPRE TEM UM NOVO FÔLEGO PARA DÁ PARA OS SEUS SERVOS E RENOVA SUA IGREJA PARA QUE PRODUZA BONS FRUTOS)
Com o andar do tempo, porém, as plantas murcham.
8. Mas, verdadeiramente, esta nova plantação teve um sucesso correspondente às esperanças nela depositadas? Todos os rebentos crescem bem? Todas as árvores as plantas da nova plantação produzem nardo e açafrão, ou mirra, ou aromas, ou frutos preciosos? [1]. Ouçamos a voz de Deus, que fala à sua Igreja: «Eu plantei-te, ó vinha, com sarmentos todos de boa qualidade. Como, pois, degeneraste para mim, convertendo-te em vinha bastarda?» (Jeremias, 2, 21). Eis Deus que se lamenta, dizendo que também esta nova plantação se abastardou!
(COMENIUS, EM SEU DISCURSO SOBRE O PECADO E CORRUPÇÃO DA NATUREZA HUMANA, FALA QUE MESMO A IGREJA, QUE É A VINHA DE DEUS E QUE NELA ELE PLANTOU ÁRVORES E PLANTAS QUE ERAM PARA DÁ FRUTOS E FLORES, AINDA ALI, DEUS ENCONTRA ESPINHOS, MATO E ERVAS DANINAS).
Queixas de Deus e dos homens sábios acerca deste assunto.
9. A Sagrada Escritura está cheia de queixas semelhantes: estão cheios de todo o gênero de confusão os olhos de todos aqueles que alguma vez se dispuseram a examinar as condições humanas e também as da Igreja. O mais sábio dos homens, Salomão, refletindo profundamente em tudo o que acontece sob o sol, mesmo nas coisas por ele mesmo pensadas, ditas e feitas, começou a deplorar que «nunca se lhe apresentasse à mente outra coisa senão vaidade e desordem; que as perversidades se não pudessem corrigir e os defeitos enumerar» (Eclesiastes, I, 15). De tal maneira que até «a verdadeira sabedoria é uma aflição do espírito e multiplica a indignação e a desgraça» (Ibid., 8).
( COMENIUS DE POSSE DE TEXTOS BÍBLICOS, SABIAMENTE ENFATIZA QUE O RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO DEPLORÁVEL É O PRINCÍPIO PARA QUE O HOMEM SE ENCONTRE E SE DESCUBRA, MESMO A IGREJA{OS CRISTÃOS, OS CRENTES, OU OS EVANGÉLICOS} NÃO TEM O QUE SE GLORIAR MORALMENTE).
Porque é que o povo não se cura destas coisas.
10. Com efeito, assim como quem ignora que tem uma doença, não a cura; quem não sente dores, não se lamenta; quem não se apercebe do perigo, não se arrepia, mesmo que esteja sobre um abismo ou sobre um precipício; assim também não é de admirar que as desordens, que corroem o gênero humano e a Igreja, não façam impressão a quem as não considera. Mas quem se vê a si mesmo, e os outros, cobertos de infinitas manchas, e sente já que as suas úlceras e as dos outros supuram cada vez mais, e tem o nariz cheio do terrível odor que delas sai; quem se vê a si e aos outros estar no meio de pericolusíssimas voragens e despenhadeiros, e girar entre laços tensos; mais ainda, quem se vê conduzido por precipícios ininterruptos, e que este e aquele se precipitaram já, é difícil que não se arrepie, que não se sinta aterrado, que não morra de dor.
( O PIOR DEFEITO DO SER HUMANO É A FALTA DE RECONHECIMENTO DA SUA CONDIÇÃO DEPLORAVEL MORAL E ESPIRITUAL. A CADA INVENÇÃO, A CADA TECNOLÓGIA, OS ARAUTOS DO HUMANISMO PREGAVAM QUE AGORA A HUMANDADE ALCANÇARIA UM ESTÁGIO DE IGUALDADE, LIBERDADE E PAZ. MAS O QUE VEMOS É CADA VEZ MAIS AUMENTANDO O ABISMO ENTRE OS HOMENS, ENTRE AS CLASSES SOCIAIS. CADA UM PRECISA ENXERGAR PARA DENTRO E SI E VÊ O SER HUMANO PODRE QUE É. COMO DIZ COMENIUS É COMO ALGUÉM QUE TEM UMA DOENÇA E A IGNORA, COM CERTEZA NÃO PROCURARÁ A CURA)
Demostra-se por indução que tudo o que nos pertence está pervertido e depravado.
11. Na verdade, do que existe em nós ou do que a nós pertence, haverá algo que esteja no seu devido lugar ou no seu estado? Nada, em parte alguma. Invertido e estragado, tudo está destruído ou arruinado. No lugar da inteligência, pela qual deveremos igualar os anjos, está, na maior parte de nós, uma estupidez tão grande que, precisamente como os animais brutos, ignoramos até as coisas que mais necessidade temos de saber. No lugar da prudência, pela qual, sendo nós destinados à eternidade, deveremos preparar-nos para a eternidade, está um tão grande esquecimento, não só da eternidade, mas até da morte, que a maior parte dos homens são presa de coisas terrenas e passageiras e até de iminentíssima morte. No lugar da sabedoria celeste, pela qual nos fora concedido reconhecer e venerar os aspectos ótimos das coisas ótimas e saborear, por isso, os seus frutos dulcíssimos, está uma repugnantíssima aversão àquele Deus que nos dá a vida, o movimento e o ser [2], e uma estultíssima irritação contra a sua divina potência. No lugar do amor mútuo e da mansidão, estão ódios recíprocos, inimizades, guerras e carnificinas. No lugar da justiça, está a iniquidade, a injustiça, as opressões, os furtos e as rapinas. No lugar da castidade, está a impureza e a obscenidade dos pensamentos, das palavras e das ações. No lugar da simplicidade e da veracidade, estão as mentiras, as fraudes e os enganos. No lugar da humildade, está o fausto e a soberba de uns para com os outros.
( A HAMARTIOLOGIA DEFENDIDA POR COMENIUS É BÍBLICA, QUANDO ELE RETRATA QUE O PECADO ESTRAGOU NÃO SOMENTE O SER HUMANO, MAS AS COISAS QUE LHE PERTENCE, O HOMEM CRIOU A ARMA NUCLEAR A PRINCIPIO PARA USO NA MEDICINA, MAS LOGO FOI USADA COMO PODER DESTRUIDOR. A SIMPLES FACA QUE ERA PARA SER UM IMPORTANTE INSTRUMENTO DE COZINHA, JÁ FOI ARMA QUE CEIFOU TANTAS VIDAS, O MAL QUE ESTA NO HOMEM SE PROPAGOU TAMBÉM PARA AS COISAS QUE LHE PERTENCE).
E nós estamos completamente perdidos.
12. Ai de ti, infeliz geração, que degeneraste tanto! «O Senhor olha do céu para os filhos dos homens, para ver se há quem tenha prudência e busque a Deus. Todos à uma se extraviaram e se perverteram; não há quem faça o bem, não há sequer um» (Salmo
13, 2-3). Mesmo aqueles que se apresentam como guias de outros seguem por caminhos maus e tortuosos; aqueles que deveriam ser portadores de luz, na maioria das vezes, difundem trevas. Efetivamente, se, aqui ou além, há um pouquinho de bem e de verdade, é mutilado, débil e disperso, não passando de uma sombra, de uma opinião, se se confronta com aquilo que verdadeiramente deveria ser. Se há alguém que se não aperceba disto, saiba que sofre de vertigens: os sábios, contemplando as coisas que lhes dizem respeito e as alheias, não com os óculos das opiniões comuns, mas com a luz clara da verdade, vêem aquilo que vêem.
(A DECADÊNCIA MORAL HUMANA É LATENTE, PERMANENTE, TODOS ESTÃO DEBAIXO DA MESMA CONDIÇÃO MISERÁVEL DO PECADO QUE IGUALA TODOS OS HOMENS NA MESMA NATUREZA, MESMO AQUELES QUE SE DISPÕEM A CONDUZIR ESPIRITUALMENTE OS OUTROS)
Duplo conforto:
1 - O Paraíso eterno.
13. Resta, todavia, para nós um duplo conforto. Primeiro: Deus prepara para os seus eleitos o paraíso eterno, onde readquirirão a perfeição e até uma perfeição mais plena e mais sólida que aquela primeira perfeição, agora perdida. Nesse paraíso habita Cristo (Lucas, 23, 43), a ele foi arrebatado Paulo (Coríntios, II, 12, 4), e João pôde ver a sua glória (Apocalipse, 2, 7 e 21, 10).
( A ESPERANÇA ETERNA É O PRINCÍPIO NA QUAL DEVEMOS ALICERCAR NOSSA FÉ, DEVEMOS TER EM MENTE QUE A PRINCIPAL FINALIDADE DESTA VIDA É SERVIR DE TRAMPOLIM PARA OS FIÉIS CHEGAREM AO PARAÍSO. NOSSA ESPERANÇA MAIOR É ESPIRITUAL E FUTURA)
Também aqui, de tempos a tempos, se pode renovar o paraíso da Igreja.
14. O segundo conforto vem do fato de que Deus, costuma renovar, de tempos a tempos, mesmo aqui na terra, a sua Igreja, e transformar os desertos num jardim de delícias, como o mostram precisamente as promessas divinas acima referidas. Sabemos que, destas transformações, algumas foram feitas de modo solene: depois da Queda; depois do Dilúvio; depois da entrada do povo hebreu na terra de Canaan; no tempo de David e no tempo de Salomão; depois do regresso da Babilônia e da reedificação de Jerusalém; depois da ascensão de Cristo ao céu e da pregação do Evangelho aos gentios; no tempo de Constantino e em outras ocasiões. Se, porventura, também agora, após os furores de guerras tão atrozes e após tão grandes devastações de nações, o Pai das misericórdias se prepara para nos olhar com uma face mais benigna, somos obrigados a caminhar ao encontro de Deus e a concorrer também nós para o aperfeiçoamento da nossa vida, segundo os modos e os caminhos que nos mostrar o mesmo sapientíssimo Deus, o qual ordena tudo conforme os seus caminhos.
(UMA OBSERVAÇÃO HISTÓRICA DE COMENIUS, É DE GRANDE VALIA, POIS QUE A HUMANIDADE E A IGREJA, ELA NÃO TEM UM DESENVOLVIMENTO LINEAR, NEM EM ASCENÇÃO, MAS EM ONDAS, EM CERTOS TEMPOS A HUMANIDADE E O POVO DE DEUS ESTÃO FLORESCENDO, EM OUTROS TEMPOS, SOFRE DAS INTEMPÉRIES DO TEMPO, SÃO ONDAS DE PROGRESSO E REGRESSO).
O modo mais eficaz desta renovação fornece-a uma reta formação da juventude.
15. Um dos primeiros ensinamentos, que a Sagrada Escritura nos dá, é este: sob o sol não há nenhum outro caminho mais eficaz para corrigir as corrupções humanas que a reta educação da juventude. Com efeito, Salomão, depois de ter percorrido todos os labirintos dos erros humanos e de se ter lamentado porque se não podiam corrigir as perversidades e enumerar os defeitos dos homens, volta-se finalmente para os jovens, suplicando-lhes «que se lembrem do seu Criador nos dias da juventude e O temam e observem os mandamentos, porque isto é o essencial para o homem» (Eclesiastes, 12, 13). E noutro lugar diz: «Instrui o jovem no caminho que deve seguir, e ele não se afastará dele, mesmo quando for velho» (Provérbios, 22, 6). E por isso David diz: «Vinde filhos, ouvi-me, eu vos ensinarei o temor de Deus» (Salmo 33, 11). Mas também o próprio David celeste e o autêntico Salomão, o Filho eterno de Deus, enviado do céu para regenerar a humanidade, nos ensinou, como que levantando o dedo, o mesmo caminho, quando disse: «Deixai vir a mim as criancinhas, e não as afasteis de mim, porque é delas o reino dos céus» (Marcos, 10,14). E a nós disse: «Se não vos converterdes e vos não tornardes como meninos, não entrareis no reino dos céus» (Mateus, 18,3).
(SABIAMENTE COMENIUS EXTRAI DAS ESCRITURAS SAGRADAS A IMPORTANCIA DA EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS NO BOM CAMINHO, FAZENDO ASSIM OS RESULTADOS SÃO MELHORES, DO CONTRÁRIO, TENTAR REFORMAR O HOMEM ADULTO SAI MAIS CARO E OS RESULTADOS QUASE SEMPRE PÍFIOS).
As crianças não são apenas o objeto, mas também o exemplar da verdadeira regeneração
"escola para crianças é melhor do que presídios para adultos."
16. Mas que palavras são estas?! Ouvi-as bem e examinai-as atentamente todos, para ver que coisa queria dizer o Mestre e Senhor de todos. Como proclama que só as criançinhas são merecedoras do reino de Deus, admitindo a participar na herança apenas os homens que se tenham tornado semelhantes às criancinhas! Oxalá vós, diletas criancinhas, possais entender este vosso celeste privilégio! Eis no que ele consiste: é vosso o resto de dignidade que ficou ainda no gênero humano, ou seja, o direito que ele tem ainda á pátria celeste! (Cristo é vosso, vossa é a santificação do Espírito, vossa a graça de Deus, vossa a herança da vida futura; sim, tudo isto é vosso, pertence-vos a vós particularmente e infalivelmente, pertence mesmo só a vós, a não ser que qualquer outro, convertendo-se, se torne como vós. Eis que nós, adultos, que julgamos que só nós somos homens e vós sois macaquinhos, só nós sábios e vós doidinhos, só nós faladores inteligentes e vós ainda não aptos para falar, eis que, enfim, somos obrigados a vir à vossa escola! Vós fostes-nos dados como mestres, e as vossas obras são dadas às nossas como espelho e exemplo!
A SIMPLICIDADE DAS CRIANÇAS É A PORTA ABERTA PARA UMA BOA APREDIZAGEM
(QUANDO ADULTO O SER HUMANO CRIA MAIS RESISTÊNCIA AO APRENDIZADO DO QUE A CRIANÇA, O ADULTO POR JÁ TER ALGUM CONHECIMENTO PRÉVIO E POR FAZER COMPARAÇÕES COM O QUE SABE COM A MATÉRIA QUE ESTA APREENDENDO, FILTRA OS ENSINAMENTOS, CRIANDO BARREIRA MENTAL PARA A APRENDIZAGEM, ENQUANTO A CRIANÇA EM SUA PUREZA E INOCÊNCIA RECEBE COM A MENTE E O CORAÇÃO O QUE OUVE. JESUS DISSE QUE DEVEMOS APRENDER, RECEBER OS ENSINOS COMO UMA CRIANÇA).
Porque é que Deus tem em tanta consideração as criancinhas.
17. Se alguém quiser saber porque é que Deus tem em tão grande consideração as criancinhas e as aprecia tanto, por mais que reflita, não encontrará uma razão mais forte que esta: as criancinhas têm todas as faculdades mais simples e mais aptas para receber os remédios que a misericórdia divina oferece para a cura das coisas humanas, em estado tão deplorável. Com efeito, embora a corrupção, produzida pela queda de Adão, tenha invadido toda a substância do nosso ser, todavia, uma vez que Cristo, segundo Adão, enxertou de novo em si mesmo, árvore da vida, a natureza humana, e não é excluído senão quem se exclui a si mesmo pela sua própria incredulidade (Marcos, 16, 16) (a qual não pode ainda verificar-se nas criancinhas), resulta que as criancinhas, não estando ainda novamente manchadas, nem pelos pecados nem pela incredulidade, são proclamadas herdeiras da herança patrimonial do reino de Deus, desde que saibam conservar a graça de Deus já recebida e manter-se limpas do mundo. Além disso, estas coisas podem ensinar-se mais facilmente às crianças que aos outros, pois não estão ainda dominadas pelos maus hábitos.
(A INCREDULIDADE DO ADULTO É QUE CRIA A RESISTÊNCIA A APRENDIZAGEM, AS CRIANÇAS SÃO MAIS SIMPLES, OUVEM COM FÉ, POR ISSO NÃO SE DEVE ABUSAR DESTA INGENUIDADE INFANTIL E ENSINAR MENTIRAS E MITOS QUE MAIS TARDE IRÃO DECEPCIONA-LAS COM OS ADULTOS, MENTIRAS COMO PAPAI NOEL E COELHINHO DA PÁSCOA)
Porque nos obriga a nós, adultos, a ir junto das crianças.
18. Cristo ordena que nós, adultos, nos convertamos para que nos façamos como criancinhas, isto é, para que desaprendamos os males que havíamos contraído com uma má educação e aprendido com os maus exemplos do mundo, e regressemos ao primitivo estado de simplicidade, de mansidão, de humildade, de castidade, de obediência, etc. E, na verdade, uma vez que não há coisa mais difícil que desabituar-se daquilo a que se estava habituado (com efeito, o hábito é uma segunda natureza, e a natureza, ainda que se expulse com a forca, volta sempre a aparecer [3]), daí resulta que não há coisa mais difícil que voltar a educar bem um homem que foi mal educado. Na verdade, uma árvore, tal como cresce, alta ou baixa, com os ramos bem direitos ou tortos, assim permanece depois de adulta e não se deixa transformar. Os pedaços de madeira, curvados para fazer as rodas, endurecidos ali no seu posto, quebram de preferência a tornarem-se direitos, como a experiência o mostra de modo evidente. Acerca dos homens habituados a fazer o mal, Deus afirma o mesmo: «Acaso um Etíope pode mudar a cor da sua pele e um leopardo as suas malhas? Acaso podeis fazer o bem, vós que não aprendestes senão a fazer o mal?» (Jeremias, 13, 23).
(UMA GALHO TORNO DE UMA ÁRVORE NÃO SE PODE ENDIREITAR, ESTE DITADO REFLETE A DIFICULDADE DE EDUCAR UM ADULTO QUE JÁ ADQUIRIU OS MAUS HÁBITOS, É LÓGICO QUE O SER HUMANO NÃO É SÓ PRODUTO DA EDUCAÇÃO, O SER HUMANO JÁ NASCE COM UMA ÍNDOLE E COM UMA PRÉ-DISPOSIÇÃO PARA CERTAS MANIAS OU COMPORTAMENTOS, MAS SE NA INFANCIA ELE RECEBE SÓLIDA EDUCAÇÃO, QUANDO CRESCER, ESTA PESSOA TERÁ MAIS CHANCES DE CONTROLAR SEUS INSTINTOS MAUS).
É necessário que a reforma da Igreja comece pelas criancinhas.
19. Daqui se infere esta conclusão necessária: se se devem aplicar remédios às corruptelas do gênero humano, importa fazê-lo de modo especial por meio de uma educação sensata e prudente da juventude. Importa fazer precisamente como quem quer renovar um pomar, o qual tem necessariamente de plantar novas arvorezinhas e de as tratar com muito cuidado, para que cresçam belas e grandes; com efeito, para transplantar árvores velhas e nelas infundir fecundidade, não basta a força da arte. Portanto, as mentes simples e não ainda ocupadas e estragadas por vãos preconceitos e costumes mundanos, são as mais aptas para amar a Deus
( A EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS É A BASE DE UMA SOCIEDADE E DE UMA IGREJA MAIS PURA, MAS ESTA EDUCAÇÃO NÃO PODE SER MERAS INFORMAÇÕES E SIM “FORMAÇÕES”, FALTA NAS ESCOLAS DISCIPLINAS COMO MORAL, CIVISMO, TEMOR A DEUS, RESPEITO AS LIDERANÇAS, HONESTIDADE, VICIOS E VIRTUDES. ENSINAR GEOGRAFIA, HISTÓRIA, MATEMÁTICA, CIÊNCIAS, LÍNGUA, NÃO AJUDA A FORMAR UM SER HUMANO, POR ISSO O NOSSO MUNDO PIOROU MORALMENTE NO ÚLTIMO SÉCULO)..
Testemunho de Deus.
20. Deus mostra isto pela boca do profeta, quando, ao lamentar-se da corrupção universal, afirma que «já não há a quem Ele possa ensinar a sabedoria, a quem possa fazer entender a sua doutrina, a não ser aos meninos acabados de desquitar, aos que acabam de ser desmamados» (Isaías, 28, 9).
(AS CRIANÇAS DEVEM RECEBER SÓLIDOS ENSINOS MORAIS, PATRIÓTICOS, RELIGIOSOS PARA QUE POSSAM ENFRENTAR O MUNDO MAIS PREPARADOS ESPIRTUALMENTE PSICOLOGICMANTE. ESTA FALTA DE BASE MORAL É O MOTIVO DE TANTOS ADOLESCENTES SEREM FACILMENTE ATRAIDOS PELAS DROGAS, DEPOIS O GOVERNO GASTA RIOS DE DINHEIRO TENTANDO CONSERTAR OS JOVENS OU PELOS MENOS DETE-LOS EM INSTITUIÇÕES PRISIONAIS. GOVERNO QUE NÃO GASTA NA EDUCAÇÃO, GASTARÁ COM DETENÇÃO)
This site is a study of the principles of education based on the teaching of Comenius.
terça-feira, 17 de março de 2009
CAPÍTULO 1 E 2
Capítulo 1
O HOMEM
É A MAIS ALTA,
A MAIS ABSOLUTA
E A MAIS EXCELENTE
DAS CRIATURAS
Supunha-se que o conhece-te a ti mesmo tivesse vindo do céu.
1. Quando Pítaco [1] pronunciou o seu «conhece-te a ti mesmo» os sábios acolheram esta máxima com tão grandes aplausos que, para a recomendarem ao povo, afirmaram que ela viera do céu, e tiveram o cuidado de a fazer inscrever, em letras de ouro, no templo de Apolo, em Delfos, onde o povo afluia em grande número. Este foi um ato de sabedoria e de piedade; aquela foi, de fato, uma ficção, mas absolutamente conforme à verdade, como para nós é evidente mais que para eles.
Veio verdadeiramente do céu.
2. Efetivamente, a voz que, vindo do céu, ressoa nas Sagradas Escrituras, que outra coisa quer dizer senão: «ó homem, que tu me conheças, que tu te conheças?» Eu, fonte de eternidade, de sabedoria e de beatitude; tu, criatura, imagem e delícia minha.
Sublimidade da natureza humana.
3. Com efeito, destinei-te a compartilhar comigo da eternidade; para teu uso, preparei o céu, a terra e tudo o que neles está contido; só em ti juntei, ao mesmo tempo, todas as prerrogativas, das quais as outras criaturas apenas têm uma: o ser, a vida, os sentidos e a razão. Fiz-te soberano das obras das minhas mãos, e coloquei tudo a teus pés, as ovelhas, os bois e os outros animais da terra, as aves do céu e os peixes do mar, e desta maneira coroei-te de glória e de honra (Salmo 8, 6-9). A ti, finalmente, para que nada te faltasse, dei-me eu próprio, mediante a união hipostática, ligando para sempre a minha natureza com a tua, sorte que não coube a nenhuma das outras criaturas visíveis e invisíveis. Com efeito, qual das outras criaturas, no céu ou na terra, se pode gloriar de que Deus se revelasse na sua própria carne e apresentado pelos anjos? (Timóteo, I, 3, i6), ou seja, não apenas para que vejam e se admirem a ver quem desejavam ver (Pedro, I, 1, 12), mas ainda para que adorem a Deus que se revelou vestido de carne, ou seja, Filho de Deus e do homem (Hebreus, I, 6; João, I, 51; Mateus, 4, 11). Deves, portanto, compreender que és o protótipo, o admirável compêndio das minhas obras, o representante de Deus no meio delas, a coroa da minha glória.
É necessário colocar esta verdade debaixo dos olhos de todos os homens.
(COMENIUS CITA A CÉLEBRE FRASE:"conhece-te a ti mesmo" PARA DIZER QUE O HOMEM PODE ENCONTRAR DEUS APÓS CONHECER PROFUNDAMENTE O SER HUMANO, PORQUE O HOMEM TEM A GLÓRIA DE SER A UNICA CRIATURA FEITA A IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS)
4. Oxalá todas estas verdades sejam esculpidas, não nas portas dos templos, não nos frontispícios dos livros, não, enfim, nas línguas, nos ouvidos e nos olhos de todos os homens, mas nos seus corações. Deve procurar-se, na verdade, que todos aqueles a quem cabe a missão de formar homens façam com que todos vivam conscientes desta dignidade e excelência, e empreguem todos os meios para atingir o objetivo desta sublimidade.
( O EDUCADOR É UM FORMADOR DE HOMEM, UMA BOA EDUCAÇÃO NO PRINCÍPIO DA VIDA É FUNDAMENTAL PARA QUE CRESCAM ADULTOS QUE APRENDAM A RESPEITAR AS REGRAS E SEJAM JUSTOS)
Capítulo II
O FIM
ÚLTIMO DO HOMEM
ESTÁ
FORA DESTA VIDA
A mais excelente das criaturas deve necessariamente ter a finalidade mais excelente.
1. A própria razão nos diz que uma criatura tão excelente é destinada a um fim mais excelente que o de todas as outras criaturas, isto é, sem dúvida, a gozar, juntamente com Deus, que é o cume da perfeição, da glória e da beatitude, para sempre, a mais absoluta glória e beatitude.
O que é evidente.
(A BÍBLIA DÁ UMA ENFASE NO SER HUMANO COMO A CRIATURA DIFERENTE DE TODAS AS OUTRAS, PORQUE NELE DEUS COLOCOU O ESPÍRITO O QUE LHE CONFERE UM STATUS SUPERIOR AOS DEMAIS SERES CRIADOS. A DOUTRINA HUMANISTA COLOCA O HOMEM EM IGUALDADE COM OS "BICHOS". MAS É EVIDENTE QUE OS HOMENS SÃO INFINITAMENTE SUPERIORES AS ANIMAIS, E ISSO NÃO FOI POR OBRA DA EVOLUÇÃO MAS DA CRIAÇÃO )
2. Mas embora isto se infira claramente da Sagrada Escritura e nós acreditemos firmemente que é de fato assim, todavia, não será tempo perdido ver de quantos modos, nesta vida, Deus nos tenha figurado o Além («Plus ultra») ou de quantos modos a ele possamos chegar.
1. Da história da criação.
3. Em primeiro lugar, no próprio momento da criação. Com efeito, não ordenou ao homem simplesmente, como aos outros seres, que viesse ao mundo; mas, após uma solene deliberação, formou-lhe o corpo como que com os seus próprios dedos e insuflou-lhe por alma uma parte de si mesmo.
2. Da constituição do nosso ser.
4. A constituição do nosso ser mostra que não nos bastam as coisas que possuimos nesta vida. Com efeito, temos aqui três espécies de vida: vegetativa, animal, e intelectual ou espiritual — a primeira das quais nunca se manifesta fora do corpo; a segunda, mediante as operações dos sentidos e do movimento, põe-nos em relação com os objetos exteriores; a terceira pode existir também separadamente, como se verifica nos anjos. Ora, uma vez que é evidente que este grau supremo da vida é fortemente obscurecido e perturbado em nós pelos outros dois, segue-se necessariamente que o será também no lugar onde ela for conduzida ao mais elevado grau de perfeição .
(O SER HUMANO É DISTINTO DOS OUTROS SERES VIVOS PORQUE POSSUI VIDA INTELECTUAL E ESPIRITUAL. OS VEGETAIS VIVEM LIMITADOS PELO CORPO QUE POSSUI, FICANDO IMOVEIS. OS ANIMAIS, PELOS SENTIDOS QUE POSSUEM PODEM TER CONHECIMENTO DO MUNDO FAZENDO DESCOBERTAS PELO TATO, OLFATO, PALADAR, AUDIÇÃO E VISÃO. O HOMEM PELO PENSAMENTO, RAZÃO, SENTIMENTO E ESPIRITUALIDADE PODE IR MUITO ALÉM, POR ISSO SÓ ELE TEM O SENSO DE RELIGIOSIDADE )
3. De tudo o que fazemos e sofremos nesta vida.
5. Tudo o que fazemos e sofremos nesta vida mostra que não atingimos aqui o nosso fim último, mas que tudo o que é nosso, e bem assim nós próprios, tende para outro lugar. Com efeito, tudo o que somos, fazemos, pensamos, falamos, imaginamos, adquirimos e possuímos não é senão uma espécie de escada, na qual, subindo cada vez mais acima, é certo que subimos sempre degraus mais altos, mas nunca chegamos ao último. A princípio, com efeito, o homem nada é, como nada era ab aeterno; começa a desenvolver-se somente no útero materno, a partir de uma gota de sangue paterno. Que é, portanto, o homem no princípio? Matéria informe e bruta. A seguir, assume os traços de um pequeno corpo, mas ainda sem sentidos nem movimentos. Depois, começa a mover-se e, por força da natureza, vem à luz; e, pouco a pouco, começam a abrir-se os olhos, os ouvidos e os restantes sentidos. Após um certo lapso de tempo, revela-se o sentido interno, quando sente que vê, que ouve e que sente. Depois, notando as diferenças entre as coisas, manifesta-se o intelecto; finalmente, a vontade, aplicando-se a certos objetos e fugindo de outros, assume o papel de diretora.
Em todas estas coisas há uma gradação, mas sem termo.
("O HOMEM COMEÇA A SE DESENVOLVER A PARTIR DE UMA GOTA DE SANGUE PATERNO", ISTO VALE DIZER QUE O SER HUMANO NASCE GRAÇAS A TRANSMISSÃO GENÉTICA PELO "SÉMEN", NÃO PROPRIAMENTE PELO "SANGUE", MAS OS ANTIGOS SEMPRE USARAM O SANGUE COMO SINÔNIMO DE ELEMENTO TRANSMISSOR DA VIDA. TANTO É QUE EM TODO O ANTIGO TESTAMENTO, NA BÍBLIA HÁ UM DESTAQUE E REVERÊNCIA AO SANGUE COMO A SUBSTÂNCIA QUE REPRESENTA A SEDE DA ALMA
6. Mas em cada uma daquelas coisas há uma mera gradação. De fato, pouco a pouco, aparece a inteligência, como a luz radiante da aurora, e começa a emergir da profunda escuridão da noite; e, durante todo o tempo que dura a vida, cresce sempre mais a luz intelectual (a não ser que se trate de um débil), até ao momento da morte. De igual modo, as nossas ações são, a princípio, tênues, débeis, rudes e muito confusas; depois, a pouco e pouco, juntamente com as forças do corpo, também as potencialidades da alma se desenvolvem, de tal maneira que, durante todo o tempo da vida (exceto quem é tomado de um extremo torpor, sendo como que um morto vivo), há sempre qualquer coisa a fazer, a propor e a tentar; todas aquelas faculdades, numa alma generosa, tendem sempre mais para cima, sem um termo. Com efeito, nesta vida, nunca se consegue encontrar o fim, nem dos nossos desejos nem das nossas tentativas.
Tudo isto é demonstrado pela experiência.
7. Para qualquer parte que alguém se volte, conhecerá esta verdade por experiência. Se alguém ama o poder e as riquezas, não encontrará onde saciar a sua fome, ainda que chegue a possuir todo o mundo, o que é evidente pelo exemplo de Alexandre. Se alguém arde com sede de honras, não poderá ter paz ainda que seja adorado por todo o mundo. Se alguém se entrega aos prazeres, embora todos os seus sentidos nadem num mar de delícias, todas as coisas lhe parecem gastas e o seu apetite corre de um objeto para outro. Se alguém aplica a mente ao estudo da sabedoria, nunca encontra o fim, pois, quanto mais coisas uma pessoa sabe, tanto melhor compreende que lhe restam mais para saber. Efetivamente, com toda a razão, Salomão disse: «Os olhos não se saciam de ver e os ouvidos têm sempre desejo de escutar» (Eclesiastes, 1, 8).
Nem mesmo a morte põe fim às nossas aspirações.
8. Os exemplos dos moribundos provam que nem a morte marca o último termo das nossas aspirações. Com efeito, à hora da morte aqueles que passaram honestamente a vida exultam ao pensar que é para entrar numa vida melhor; ao contrário, aqueles que mergulharam no amor da vida presente, apercebendo-se de que a vão abandonar e de que deverão emigrar para outro sítio, começam a tremer, e se, de um modo ou de outro, ainda o podem fazer, reconciliam-se com Deus e com os homens. E embora o corpo, enfraquecido pelas dores, se debilite, os sentidos se ofusquem e a própria vida expire, todavia, a mente, com mais vivacidade que nunca, realiza as suas funções, tomando com devoção, gravidade e circunspecção as necessárias disposições acerca de si mesmo, da família, da herança, do Estado, etc.; de tal maneira que, quem vê morrer um homem piedoso e sábio parece ver um pedaço de terra que se esboroa, e quem o ouve falar, parece ouvir um anjo; e tem necessariamente que confessar que não se trata senão de um hóspede que se prepara para abandonar um pequeno tugúrio prestes a cair em ruínas. Os próprios pagãos compreenderam esta verdade; e por isso os romanos, como se lê em Festo [1], chamaram à morte partida, («ecabitio»), e os gregos usam, muitas vezes, a palavra que significa ir-se embora, em vez de perecer ou de morrer. Porquê, senão porque se compreende que, pela morte, se passa para um outro lugar?
O exemplo do Cristo-Homem ensina que os homens são destinados à eternidade.
9. Mas, a nós cristãos, esta verdade parece mais clara depois que Cristo, Filho de Deus vivo, enviado do céu a reproduzir a imagem de Deus desaparecida de nós, mostrou a mesma coisa com o seu exemplo. Efetivamente, concebido e dado à luz mediante o nascimento, andou entre os homens; depois de morto, ressuscitou e subiu aos céus, e a morte já O não tem sob o seu domínio. Ora Ele é chamado, e é de fato, o nosso precursor (Hebreus, 6, 20), o primogênito dos irmãos (Romanos, 8,29), a cabeça dos seus membros (Efésios, 1, 22 e 23), o arquétipo de todos aqueles que devem ser reformados à imagem de Deus (Romanos, 8, 29). Portanto, assim como Ele não veio para continuar a viver neste mundo, mas para passar, terminado o curso da vida, às habitações eternas, assim também nós, uma vez que nos cabe a mesma sorte que a Ele, não devemos permanecer aqui, mas emigrar para outro lugar.
O Homem tem três espécies de morada.
10. Para cada um de nós, portanto, estão estabelecidas três espécies de vida e três espécies de morada: o útero materno, a terra e o céu. Da primeira, entra-se para a segunda, mediante o nascimento; da segunda, para a terceira, mediante a morte e a ressurreição; da terceira, nunca mais se sai, eternamente. Na primeira, recebemos apenas a vida, juntamente com um movimento e sentidos incipientes; na segunda, a vida, o movimento e os sentidos com os primórdios da inteligência; na terceira, a plenitude perfeita de todas as coisas.
E três espécies de vida.
11. A primeira vida de que falei é uma preparação para a segunda; a segunda para a terceira; a terceira, de sua própria natureza, nunca termina. A passagem da primeira para a segunda e da segunda para a terceira é estreita e acompanhada de dores, e num e noutro caso se devem depor os despojos ou invólucros (ou seja, no primeiro caso, a placenta, e, no segundo, o próprio organismo do corpo), como faz o pintainho, quando, quebrada a casca, sai para fora. A primeira e a segunda morada, portanto, são como duas oficinas: naquela forma-se o corpo para uso da vida seguinte; nesta, forma-se a alma racional para uso da vida eterna; a terceira morada produz a verdadeira perfeição e prazer de ambos.
Os israelitas são símbolo disto.
12. Assim, os israelitas (seja-nos lícito adaptar este símbolo ao nosso caso) foram gerados no Egito e de lá, pelos estreitos caminhos dos montes e do Mar Vermelho, transferidos para o deserto, aí acamparam em tendas, aprenderam a lei, lutaram com vários inimigos; finalmente, atravessado pela força o Jordão, foram constituídos herdeiros da terra de Canaan, onde corriam rios de leite e de mel.
O HOMEM
É A MAIS ALTA,
A MAIS ABSOLUTA
E A MAIS EXCELENTE
DAS CRIATURAS
Supunha-se que o conhece-te a ti mesmo tivesse vindo do céu.
1. Quando Pítaco [1] pronunciou o seu «conhece-te a ti mesmo» os sábios acolheram esta máxima com tão grandes aplausos que, para a recomendarem ao povo, afirmaram que ela viera do céu, e tiveram o cuidado de a fazer inscrever, em letras de ouro, no templo de Apolo, em Delfos, onde o povo afluia em grande número. Este foi um ato de sabedoria e de piedade; aquela foi, de fato, uma ficção, mas absolutamente conforme à verdade, como para nós é evidente mais que para eles.
Veio verdadeiramente do céu.
2. Efetivamente, a voz que, vindo do céu, ressoa nas Sagradas Escrituras, que outra coisa quer dizer senão: «ó homem, que tu me conheças, que tu te conheças?» Eu, fonte de eternidade, de sabedoria e de beatitude; tu, criatura, imagem e delícia minha.
Sublimidade da natureza humana.
3. Com efeito, destinei-te a compartilhar comigo da eternidade; para teu uso, preparei o céu, a terra e tudo o que neles está contido; só em ti juntei, ao mesmo tempo, todas as prerrogativas, das quais as outras criaturas apenas têm uma: o ser, a vida, os sentidos e a razão. Fiz-te soberano das obras das minhas mãos, e coloquei tudo a teus pés, as ovelhas, os bois e os outros animais da terra, as aves do céu e os peixes do mar, e desta maneira coroei-te de glória e de honra (Salmo 8, 6-9). A ti, finalmente, para que nada te faltasse, dei-me eu próprio, mediante a união hipostática, ligando para sempre a minha natureza com a tua, sorte que não coube a nenhuma das outras criaturas visíveis e invisíveis. Com efeito, qual das outras criaturas, no céu ou na terra, se pode gloriar de que Deus se revelasse na sua própria carne e apresentado pelos anjos? (Timóteo, I, 3, i6), ou seja, não apenas para que vejam e se admirem a ver quem desejavam ver (Pedro, I, 1, 12), mas ainda para que adorem a Deus que se revelou vestido de carne, ou seja, Filho de Deus e do homem (Hebreus, I, 6; João, I, 51; Mateus, 4, 11). Deves, portanto, compreender que és o protótipo, o admirável compêndio das minhas obras, o representante de Deus no meio delas, a coroa da minha glória.
É necessário colocar esta verdade debaixo dos olhos de todos os homens.
(COMENIUS CITA A CÉLEBRE FRASE:"conhece-te a ti mesmo" PARA DIZER QUE O HOMEM PODE ENCONTRAR DEUS APÓS CONHECER PROFUNDAMENTE O SER HUMANO, PORQUE O HOMEM TEM A GLÓRIA DE SER A UNICA CRIATURA FEITA A IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS)
4. Oxalá todas estas verdades sejam esculpidas, não nas portas dos templos, não nos frontispícios dos livros, não, enfim, nas línguas, nos ouvidos e nos olhos de todos os homens, mas nos seus corações. Deve procurar-se, na verdade, que todos aqueles a quem cabe a missão de formar homens façam com que todos vivam conscientes desta dignidade e excelência, e empreguem todos os meios para atingir o objetivo desta sublimidade.
( O EDUCADOR É UM FORMADOR DE HOMEM, UMA BOA EDUCAÇÃO NO PRINCÍPIO DA VIDA É FUNDAMENTAL PARA QUE CRESCAM ADULTOS QUE APRENDAM A RESPEITAR AS REGRAS E SEJAM JUSTOS)
Capítulo II
O FIM
ÚLTIMO DO HOMEM
ESTÁ
FORA DESTA VIDA
A mais excelente das criaturas deve necessariamente ter a finalidade mais excelente.
1. A própria razão nos diz que uma criatura tão excelente é destinada a um fim mais excelente que o de todas as outras criaturas, isto é, sem dúvida, a gozar, juntamente com Deus, que é o cume da perfeição, da glória e da beatitude, para sempre, a mais absoluta glória e beatitude.
O que é evidente.
(A BÍBLIA DÁ UMA ENFASE NO SER HUMANO COMO A CRIATURA DIFERENTE DE TODAS AS OUTRAS, PORQUE NELE DEUS COLOCOU O ESPÍRITO O QUE LHE CONFERE UM STATUS SUPERIOR AOS DEMAIS SERES CRIADOS. A DOUTRINA HUMANISTA COLOCA O HOMEM EM IGUALDADE COM OS "BICHOS". MAS É EVIDENTE QUE OS HOMENS SÃO INFINITAMENTE SUPERIORES AS ANIMAIS, E ISSO NÃO FOI POR OBRA DA EVOLUÇÃO MAS DA CRIAÇÃO )
2. Mas embora isto se infira claramente da Sagrada Escritura e nós acreditemos firmemente que é de fato assim, todavia, não será tempo perdido ver de quantos modos, nesta vida, Deus nos tenha figurado o Além («Plus ultra») ou de quantos modos a ele possamos chegar.
1. Da história da criação.
3. Em primeiro lugar, no próprio momento da criação. Com efeito, não ordenou ao homem simplesmente, como aos outros seres, que viesse ao mundo; mas, após uma solene deliberação, formou-lhe o corpo como que com os seus próprios dedos e insuflou-lhe por alma uma parte de si mesmo.
2. Da constituição do nosso ser.
4. A constituição do nosso ser mostra que não nos bastam as coisas que possuimos nesta vida. Com efeito, temos aqui três espécies de vida: vegetativa, animal, e intelectual ou espiritual — a primeira das quais nunca se manifesta fora do corpo; a segunda, mediante as operações dos sentidos e do movimento, põe-nos em relação com os objetos exteriores; a terceira pode existir também separadamente, como se verifica nos anjos. Ora, uma vez que é evidente que este grau supremo da vida é fortemente obscurecido e perturbado em nós pelos outros dois, segue-se necessariamente que o será também no lugar onde ela for conduzida ao mais elevado grau de perfeição .
(O SER HUMANO É DISTINTO DOS OUTROS SERES VIVOS PORQUE POSSUI VIDA INTELECTUAL E ESPIRITUAL. OS VEGETAIS VIVEM LIMITADOS PELO CORPO QUE POSSUI, FICANDO IMOVEIS. OS ANIMAIS, PELOS SENTIDOS QUE POSSUEM PODEM TER CONHECIMENTO DO MUNDO FAZENDO DESCOBERTAS PELO TATO, OLFATO, PALADAR, AUDIÇÃO E VISÃO. O HOMEM PELO PENSAMENTO, RAZÃO, SENTIMENTO E ESPIRITUALIDADE PODE IR MUITO ALÉM, POR ISSO SÓ ELE TEM O SENSO DE RELIGIOSIDADE )
3. De tudo o que fazemos e sofremos nesta vida.
5. Tudo o que fazemos e sofremos nesta vida mostra que não atingimos aqui o nosso fim último, mas que tudo o que é nosso, e bem assim nós próprios, tende para outro lugar. Com efeito, tudo o que somos, fazemos, pensamos, falamos, imaginamos, adquirimos e possuímos não é senão uma espécie de escada, na qual, subindo cada vez mais acima, é certo que subimos sempre degraus mais altos, mas nunca chegamos ao último. A princípio, com efeito, o homem nada é, como nada era ab aeterno; começa a desenvolver-se somente no útero materno, a partir de uma gota de sangue paterno. Que é, portanto, o homem no princípio? Matéria informe e bruta. A seguir, assume os traços de um pequeno corpo, mas ainda sem sentidos nem movimentos. Depois, começa a mover-se e, por força da natureza, vem à luz; e, pouco a pouco, começam a abrir-se os olhos, os ouvidos e os restantes sentidos. Após um certo lapso de tempo, revela-se o sentido interno, quando sente que vê, que ouve e que sente. Depois, notando as diferenças entre as coisas, manifesta-se o intelecto; finalmente, a vontade, aplicando-se a certos objetos e fugindo de outros, assume o papel de diretora.
Em todas estas coisas há uma gradação, mas sem termo.
("O HOMEM COMEÇA A SE DESENVOLVER A PARTIR DE UMA GOTA DE SANGUE PATERNO", ISTO VALE DIZER QUE O SER HUMANO NASCE GRAÇAS A TRANSMISSÃO GENÉTICA PELO "SÉMEN", NÃO PROPRIAMENTE PELO "SANGUE", MAS OS ANTIGOS SEMPRE USARAM O SANGUE COMO SINÔNIMO DE ELEMENTO TRANSMISSOR DA VIDA. TANTO É QUE EM TODO O ANTIGO TESTAMENTO, NA BÍBLIA HÁ UM DESTAQUE E REVERÊNCIA AO SANGUE COMO A SUBSTÂNCIA QUE REPRESENTA A SEDE DA ALMA
6. Mas em cada uma daquelas coisas há uma mera gradação. De fato, pouco a pouco, aparece a inteligência, como a luz radiante da aurora, e começa a emergir da profunda escuridão da noite; e, durante todo o tempo que dura a vida, cresce sempre mais a luz intelectual (a não ser que se trate de um débil), até ao momento da morte. De igual modo, as nossas ações são, a princípio, tênues, débeis, rudes e muito confusas; depois, a pouco e pouco, juntamente com as forças do corpo, também as potencialidades da alma se desenvolvem, de tal maneira que, durante todo o tempo da vida (exceto quem é tomado de um extremo torpor, sendo como que um morto vivo), há sempre qualquer coisa a fazer, a propor e a tentar; todas aquelas faculdades, numa alma generosa, tendem sempre mais para cima, sem um termo. Com efeito, nesta vida, nunca se consegue encontrar o fim, nem dos nossos desejos nem das nossas tentativas.
Tudo isto é demonstrado pela experiência.
7. Para qualquer parte que alguém se volte, conhecerá esta verdade por experiência. Se alguém ama o poder e as riquezas, não encontrará onde saciar a sua fome, ainda que chegue a possuir todo o mundo, o que é evidente pelo exemplo de Alexandre. Se alguém arde com sede de honras, não poderá ter paz ainda que seja adorado por todo o mundo. Se alguém se entrega aos prazeres, embora todos os seus sentidos nadem num mar de delícias, todas as coisas lhe parecem gastas e o seu apetite corre de um objeto para outro. Se alguém aplica a mente ao estudo da sabedoria, nunca encontra o fim, pois, quanto mais coisas uma pessoa sabe, tanto melhor compreende que lhe restam mais para saber. Efetivamente, com toda a razão, Salomão disse: «Os olhos não se saciam de ver e os ouvidos têm sempre desejo de escutar» (Eclesiastes, 1, 8).
Nem mesmo a morte põe fim às nossas aspirações.
8. Os exemplos dos moribundos provam que nem a morte marca o último termo das nossas aspirações. Com efeito, à hora da morte aqueles que passaram honestamente a vida exultam ao pensar que é para entrar numa vida melhor; ao contrário, aqueles que mergulharam no amor da vida presente, apercebendo-se de que a vão abandonar e de que deverão emigrar para outro sítio, começam a tremer, e se, de um modo ou de outro, ainda o podem fazer, reconciliam-se com Deus e com os homens. E embora o corpo, enfraquecido pelas dores, se debilite, os sentidos se ofusquem e a própria vida expire, todavia, a mente, com mais vivacidade que nunca, realiza as suas funções, tomando com devoção, gravidade e circunspecção as necessárias disposições acerca de si mesmo, da família, da herança, do Estado, etc.; de tal maneira que, quem vê morrer um homem piedoso e sábio parece ver um pedaço de terra que se esboroa, e quem o ouve falar, parece ouvir um anjo; e tem necessariamente que confessar que não se trata senão de um hóspede que se prepara para abandonar um pequeno tugúrio prestes a cair em ruínas. Os próprios pagãos compreenderam esta verdade; e por isso os romanos, como se lê em Festo [1], chamaram à morte partida, («ecabitio»), e os gregos usam, muitas vezes, a palavra que significa ir-se embora, em vez de perecer ou de morrer. Porquê, senão porque se compreende que, pela morte, se passa para um outro lugar?
O exemplo do Cristo-Homem ensina que os homens são destinados à eternidade.
9. Mas, a nós cristãos, esta verdade parece mais clara depois que Cristo, Filho de Deus vivo, enviado do céu a reproduzir a imagem de Deus desaparecida de nós, mostrou a mesma coisa com o seu exemplo. Efetivamente, concebido e dado à luz mediante o nascimento, andou entre os homens; depois de morto, ressuscitou e subiu aos céus, e a morte já O não tem sob o seu domínio. Ora Ele é chamado, e é de fato, o nosso precursor (Hebreus, 6, 20), o primogênito dos irmãos (Romanos, 8,29), a cabeça dos seus membros (Efésios, 1, 22 e 23), o arquétipo de todos aqueles que devem ser reformados à imagem de Deus (Romanos, 8, 29). Portanto, assim como Ele não veio para continuar a viver neste mundo, mas para passar, terminado o curso da vida, às habitações eternas, assim também nós, uma vez que nos cabe a mesma sorte que a Ele, não devemos permanecer aqui, mas emigrar para outro lugar.
O Homem tem três espécies de morada.
10. Para cada um de nós, portanto, estão estabelecidas três espécies de vida e três espécies de morada: o útero materno, a terra e o céu. Da primeira, entra-se para a segunda, mediante o nascimento; da segunda, para a terceira, mediante a morte e a ressurreição; da terceira, nunca mais se sai, eternamente. Na primeira, recebemos apenas a vida, juntamente com um movimento e sentidos incipientes; na segunda, a vida, o movimento e os sentidos com os primórdios da inteligência; na terceira, a plenitude perfeita de todas as coisas.
E três espécies de vida.
11. A primeira vida de que falei é uma preparação para a segunda; a segunda para a terceira; a terceira, de sua própria natureza, nunca termina. A passagem da primeira para a segunda e da segunda para a terceira é estreita e acompanhada de dores, e num e noutro caso se devem depor os despojos ou invólucros (ou seja, no primeiro caso, a placenta, e, no segundo, o próprio organismo do corpo), como faz o pintainho, quando, quebrada a casca, sai para fora. A primeira e a segunda morada, portanto, são como duas oficinas: naquela forma-se o corpo para uso da vida seguinte; nesta, forma-se a alma racional para uso da vida eterna; a terceira morada produz a verdadeira perfeição e prazer de ambos.
Os israelitas são símbolo disto.
12. Assim, os israelitas (seja-nos lícito adaptar este símbolo ao nosso caso) foram gerados no Egito e de lá, pelos estreitos caminhos dos montes e do Mar Vermelho, transferidos para o deserto, aí acamparam em tendas, aprenderam a lei, lutaram com vários inimigos; finalmente, atravessado pela força o Jordão, foram constituídos herdeiros da terra de Canaan, onde corriam rios de leite e de mel.
CAPÍTULO 03 AO 05
Capítulo III
ESTA VIDA
NÃO É
SENÃO UMA PREPARAÇÃO
PARA A VIDA ETERNA
Testemunhos desta verdade
1. Que esta vida, uma vez que tende para outra, não é vida (falando com rigor), mas um proêmio da vida verdadeira e que durará para sempre, tornar-se-á evidente, primeiro, pelo testemunho de nós mesmos; segundo, pelo testemunho do mundo; e, finalmente, pelo testemunho da Sagrada Escritura.
1. Pelo testemunho de nós mesmos.
2. Se lançarmos um olhar introspectivo sobre nós mesmos, veremos que todas as coisas da nossa vida procedem de tal modo gradualmente, que a antecedente prepara o caminho para a seguinte. Por exemplo: a nossa primeira vida desenvolve-se nas vísceras maternas. Mas em proveito de quem? Acaso em proveito de si mesma? De modo algum. Trata-se apenas de formar convenientemente um pequenino corpo para servir de habitação e de instrumento à alma, para comodidade e uso da vida seguinte, a qual vivemos à luz do sol. E apenas aquele pequenino corpo está perfeito, somos dados à luz, pois já não há nenhuma razão para que continui naquelas trevas. Do mesmo modo, portanto, esta vida que vivemos à luz do sol não é senão uma preparação para a vida eterna, de tal maneira que não é de admirar que a alma se sirva do corpo para conseguir aquelas coisas que lhe serão úteis para a vida futura. Apenas feitos estes preparativos, emigramos daqui, porque nada mais temos aqui a fazer. É verdade que alguns, antes que tenham feito esses preparativos, são arrebatados, ou antes, lançados no seio da morte, do mesmo modo que, nos casos de aborto, o feto é lançado fora do útero, não para o seio da vida, mas para o seio da morte; em ambos os casos, porém, isso acontece, é certo que com a permissão de Deus, mas contudo, por culpa dos homens.
2. O mundo visível foi criado somente para servir de sementeira, de alimentador e de escola aos homens.
3. Também o mundo visível, de qualquer parte que se olhe, atesta que não foi criado para outro fim senão para servir para a multiplicação, para a alimentação e para a educação do gênero humano.
Com efeito, uma vez que a Deus não aprouve criar os homens todos juntos, no mesmo momento, como fez com os anjos, mas produziu apenas um macho e uma fêmea, dando-lhes, a fim de que, por via de geração, se multiplicassem, as forças necessárias e a sua benção, foi preciso conceder um espaço de tempo necessário para esta sucessiva multiplicação, pelo que foram concedidos alguns milhares de anos. E para que esse tempo não fosse um tempo de confusão, de surdez e de cegueira, fez a extensão dos céus, guarnecidos com o sol, a lua e as estrelas, e ordenou que estes astros, com as suas revoluções, servissem para medir as horas, os dias, os meses e os anos. A seguir, uma vez que o homem seria uma criatura corpórea, com necessidade de um lugar para habitar, de um espaço para respirar e para se mover, de alimento para crescer e de vestidos para se adornar, fez (na parte mais baixa do mundo) um pavimento sólido, a terra: e circundou-a de ar e banhou-a com as águas, e ordenou-lhe que produzisse plantas e animais multiformes, não apenas para satisfazer as necessidades do homem, mas também para seu deleite. E, uma vez que formara o homem à sua imagem, dotado de inteligência, para que também não faltasse à inteligência o seu alimento, derivou de cada uma das criaturas muitas e várias espécies, para que este mundo visível aparecesse como um lucidíssimo espelho da infinita potência, sabedoria e bondade de Deus, na contemplação do qual o homem fosse arrebatado por um sentimento de admiração pelo Criador e impelido a conhecê-lo e movido a amá-lo. Efetivamente, a solidez, a beleza e a doçura do Criador permanece invisível e escondida no abismo da eternidade, mas por toda a parte brilha por meio das coisas visíveis e presta-se a ser apalpada, observada e saboreada. Portanto, este mundo nada mais é que a nossa sementeira, o nosso alimentador e a nossa escola. Deve, por isso, existir um mais além («Plus ultra»), onde, uma vez saídos das aulas desta escola, nos matricularemos na Academia Eterna. Pela razão, portanto, consta que as coisas se passam assim; mas é ainda mais evidente pelas Sagradas Escrituras.
3. O próprio Deus o atesta com as suas palavras.
4. O próprio Deus afirma, pela boca de Oséias, que os céus existem por causa da terra, a terra por causa do trigo, do vinho e do azeite, e tudo isto por causa dos homens (Oseias, 2,22). Tudo, portanto, existe por causa do homem, até o próprio tempo. Com efeito, não será concedida ao mundo uma duração mais longa que a necessária para completar o número dos eleitos (Apocalipse, 6, 11). Apenas este número esteja completo, os céus e a terra desaparecerão e não se encontrará mais lugar para eles (Apocalipse, 20,7), pois surgirá um novo céu e uma nova terra, onde habitará a justiça (Apocalipse, 21,1 e 2; Pedro, II, 3, 18). Finalmente, até os nomes que as Sagradas Escrituras dão a esta vida dão a entender que esta não é senão uma preparação para outra. Com efeito, dão-lhe o nome de via, viagem, porta, espera; e a nós, o nome de peregrinos, forasteiros, inquilinos, aspirantes a uma outra cidadania, a qual será verdadeiramente permanente (Gênesis, 47,9; Salmo 29, 13; Job, 7, 12; Lucas, 12, 36).
A experiência.
5. Todas estas coisas são demonstradas pelos próprios fatos e pela condição de todos os homens, o que é colocado sob os olhos de todos nós. Com efeito, quem de todos os que nasceram, depois que apareceu no mundo, não desapareceu de novo? Precisamente porque somos destinados à eternidade. Porque, portanto, pertencemos à eternidade, é necessário que esta vida seja apenas uma passagem. Por isso Cristo disse: «Estai preparados, porque não sabeis em que hora virá o Filho do homem» (Mateus, 24, 44). E é esta a razão (sabemo-lo também pela Escritura) por que Deus chama deste mundo alguns ainda na primeira idade da vida: chama-os certamente quando os vê preparados como Enoc (Gênesis, 4, 24; Sabedoria, 4, 14). Porque é que, ao contrário, usa de longanimidade para com os maus? Sem dúvida, porque não quer surpreender ninguém não preparado, mas que todos se convertam (Pedro II, 3, 9). Se, todavia, algum continua a abusar da paciência de Deus, este ordena que seja arrebatado pela morte.
Conclusão.
6. Portanto, assim como é certo que a estadia no útero materno é uma preparação para viver no corpo, assim também é certo que a estadia no corpo é uma preparação para aquela vida que será uma continuação da vida presente e durará eternamente. Feliz aquele que sai do útero materno com os membros bem formados! Mil vezes mais feliz aquele que sair desta vida com a alma bem limpa!
Capítulo IV
OS GRAUS
DA PREPARAÇÃO
PARA A ETERNIDADE
SÃO TRÊS:
CONHECER-SE A SI MESMO
(E CONSIGO TODAS AS COISAS),
GOVERNAR-SE
E DIRIGIR-SE PARA DEUS
De onde se adquire o conhecimento dos fins secundários do homem, subordinados ao fim supremo (a eternidade)?
1. É evidente, portanto, que o fim último do homem é a beatitude eterna com Deus. Quais sejam os fim subordinados àquele e conformes a esta vida transitória, torna-se evidente pelas palavras com que Deus manifestou a resolução de criar o homem: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e às aves do céu, e aos animais selváticos, e a toda a terra, e a todos os répteis que se movem sobre a terra» (Gênesis, 1, 26).
São três:
1. que conheça todas as coisas;
2. que seja rei de si mesmo;
3. que seja delícia de Deus.
2. Ora, desta passagem, torna-se evidente que foi colocado entre as criaturas visíveis para que seja:
I. Criatura racional.
II. Criatura senhora das outras criaturas
III. Criatura imagem e delícia do seu Criador
Estas três coisas estão de tal modo ligadas que não pode admitir-se nenhum divórcio entre elas, porque sobre elas se funda a base da vida presente e da futura.
Que significa que é criatura racional?
3. Que é criatura racional quer dizer que observa, dá o nome e se apercebe de todas as coisas, isto é, que pode conhecer e dar um nome a todas as coisas deste mundo e entendê-las, como é evidente (Gênesis, 2, 19). Ou então, segundo a enumeração de Salomão (Sabedoria, 7, 17 e ss.): conhecer a constituição do mundo e a força dos elementos, o princípio e o fim e o meio das estações, as mudanças dos solstícios e a variabilidade do tempo, a duração do ano e a posição das estrelas, a natureza dos animais e a alma dos brutos, as forças dos espíritos e os pensamentos dos homens, as diferenças das plantas e a potência das suas raízes: numa palavra, todas as coisas ocultas ou manifestas, etc. Nisto está compreendido também a ciência dos artífices e a arte da palavra; de tal maneira que (como diz o Eclesiástico) em nenhuma coisa, pequena ou grande, haja algo de desconhecido (Eclesiástico, 5, 18). Somente assim, com efeito, poderá de fato conservar o título de animal racional, isto é, se conhecer os fundamentos de todas as coisas.
Que significa que é senhor das outras criaturas?
4. Que é o senhor das outras criaturas quer dizer que, ordenando tudo para fins legítimos, faz reverter tudo utilmente em seu proveito; quer dizer que, portando-se por toda a parte, no meio das criaturas, como um rei, isto é, grave e santamente (ou seja, adorando apenas o Criador acima de si mesmo; os anjos de Deus, seus companheiros, como a si mesmo, e todas as outras coisas menos que a si mesmo) defende a dignidade que lhe é concedida; que não está sujeito a nenhuma criatura, nem mesmo à própria carne e que aproveita de tudo e de tudo se serve livremente; que não ignora onde, quando, como e até que ponto deve obedecer ao corpo, e onde, quando, como e até que ponto deve servir o próximo. Numa palavra, que pode regular prudentemente os movimentos e as ações, externas e internas, de si mesmo e dos outros.
Que significa que é imagem de Deus?
5. Finalmente, que é imagem de Deus, quer dizer que representa ao vivo a perfeição do seu arquétipo, como diz o próprio Arquétipo: «Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou santo» (Levítico, 19, 2).
Os referidos três atributos reduzem-se:
1. à instrução;
2. à virtude;
3. à piedade.
6. Daqui se segue que os autênticos requisitos do homem são: 1. que tenha conhecimento de todas as coisas; 2. que seja capaz de dominar as coisas e a si mesmo; 3. que se dirija a si e todas as coisas para Deus, fonte de tudo. Estas três coisas, se as quisermos exprimir por três palavras vulgarmente conhecidas, serão:
I. Instrução,
II. Virtude, ou seja, honestidade de costumes,
III. Religião, ou seja, piedade;
entendendo-se por instrução, o conhecimento pleno das coisas, das artes e das línguas; por costumes, não apenas a urbanidade exterior, mas a plena formação interior e exterior dos movimentos da alma; e por religião, a veneração interior, pela qual a alma humana se liga e se prende ao Ser supremo.
Estas três coisas são o essencial do homem nesta vida; todas as outras são acessórias .
7. Nestas três coisas reside toda a excelência do homem, porque só estas são o fundamento da vida presente e da futura; as outras (a saúde, a força, a beleza, o poder, a dignidade, a amizade, o sucesso, a longevidade) não são senão acréscimos e ornamentos externos da vida, se acaso Deus os junta a ela, ou vaidades supérfluas, pesos inúteis e estorvos nocivos, se alguém, desejando-os apaixonadamente, os vai procurar, e, descuradas as coisas mais importantes, deles se ocupa e neles se mergulha.
Ilustra-se isto com o exemplo:
1. do relógio.
8. Ilustro a minha afirmação com exemplos. O relógio (solar ou mecânico) é um instrumento elegante e muito necessário para medir o tempo, cuja substância ou essência é constituída por uma correspondência perfeita de todas as suas partes. Os estojos em que se coloca, as esculturas, as pinturas e os dourados são coisas acessórias que acrescentam qualquer coisa à sua beleza, mas nada à sua bondade. Se alguém quiser um instrumento destes de preferência belo a bom, será escarnecida a sua puerilidade, pois não repara onde está sobretudo a utilidade.
2. do cavalo.
Do mesmo modo, o valor de um cavalo está na sua força junta com a magnanimidade ou agilidade e a prontidão do voltear; a cauda solta ou atada, a crina penteada e ereta, os freios dourados, a gualdrapa com bordados de ouro, e os colares, sejam de que espécie forem, é verdade que acrescentam ornamento, mas, se víssemos alguém medir por estas coisas a excelência do cavalo, chamar-lhe-íamos estúpido.
3. da saúde
Finalmente, o bom estado da nossa saúde depende de uma digestão regular e de uma boa disposição interior. Deitar-se em leitos moles, trazer vestidos luxuosos e comer alimentos saborosos, não só não favorece a saúde, mas até a prejudica; por isso, quem procura coisas deleitáveis de preferência a coisas sãs, é um insensato. E é um insensato infinitamente mais prejudicial aquele que, desejando ser homem, se preocupa mais com os ornamentos que com a essência do homem. Por isso, o Sábio chama ímpio e estulto «a quem julga que a nossa vida é coisa de burla e um mercado lucrativo» e diz e repete que «a aprovação e a benção de Deus está muito longe de semelhante homem» (Sabedoria, 15, 12 e 19).
Conclusão.
9. Fique, portanto, assente isto: quanto maior é a atividade que, nesta vida se despende por amor da instrução, da virtude e da piedade, tanto mais nos aproximamos do fim último. Por isso, sejam estas três coisas a obra essencial da nossa vida ; tudo o resto é acessório, empecilho, aparência enganosa.
Capítulo V
AS SEMENTES
DAQUELAS TRÊS COISAS
(DA INSTRUÇÃO, DA MORAL E DA RELIGIÃO)
SÃO POSTAS
DENTRO DE NÓS
PELA NATUREZA
A primitiva natureza do homem era boa: a ela (libertando-nos da corrupção) devemos regressar.
1. Neste lugar, por natureza, entendemos, não a corrupção que, depois da queda, a todos atingiu (e por causa da qual somos chamados, por natureza, filhos da ira [1], incapazes, por nós próprios, de pensar seja o que for de bom), mas o nosso estado primitivo e fundamental, ao qual devemos regressar como nosso princípio. Neste sentido, Luís de Vives disse: «Que outra coisa é o cristão senão o homem regressado à sua natureza e restituído, por assim dizer, à sua origem, de onde o demônio o havia afastado?» (Da Concórdia e da Discórdia, livro I) [2]. Neste sentido também pode tomar-se aquilo que Sêneca escreveu: «A sabedoria está em regressar à natureza e em voltar àquele lugar de onde o erro público (ou seja, o erro cometido pelo gênero humano através dos primeiros pais) [3] nos expulsou». E diz ainda: «O homem não é bom, mas, lembrando-se da sua origem, transforma-se em bom, para que tenda a igualar Deus. Desonestamente, ninguém consegue subir ao lugar de onde descera» (Carta 93) [4].
A força proveniente da providência eterna impele para o estado primitivo.
2. Entendemos também pela palavra natureza a providência universal de Deus, ou seja, o influxo incessante da bondade divina para operar tudo em todos, ou seja, em cada criatura aquilo para que a destinou. Na verdade, o objetivo da sabedoria divina foi nada fazer em vão, isto é, nem sem qualquer finalidade, nem sem os meios adequados para conseguir esse fim. Por conseqüência, tudo o que existe, existe para qualquer fim, e para que o possa atingir foi dotado dos necessários orgãos e auxílios; mais ainda, foi dotado também de uma verdadeira tendência, a fim de que nunca seja impelido para o seu fim contra a sua vontade e com relutância, mas antes com prontidão e com prazer pelo instinto da própria natureza, de modo que, se disso é mantido afastado, advenha o sofrimento e a morte. É certo, por isso, que também o homem foi feito, por natureza, apto para a inteligência das coisas, para a harmonia dos costumes e para o amor a Deus sobre todas as coisas (vimos já, com efeito, que foi destinado para estas coisas), e é tão certo que as raízes daquelas três coisas se encontram nele, quanto é certo que a cada planta foram dadas as raízes sob a terra.
A sabedoria colocou no homem raízes eternas.
3. Para que se torne mais evidente o que pretende dizer o Eclesiástico quando proclama que a sabedoria colocou fundamentos eternos nos homens (Eclesiástico, 1, 14), vejamos que fundamentos de Sabedoria, de Virtude e de Religião foram postos em nós, para que nos apercebamos quão maravilhoso organismo de sabedoria é o homem.
I. Tornando-o apto para adquirir conhecimento das coisas. O que é evidente, porque o fez:
1. sua imagem
4. É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então não será uma imagem. Ora, uma vez que, entre os atributos de Deus, se destaca a omnisciência, necessariamente brilhará no homem algo de semelhante a ela. E porque não? Sem dúvida que o homem está no meio das obras de Deus, tendo uma mente lúcida, como um espelho esférico, suspenso na parede de uma sala, o qual recebe a imagem de todas as coisas, digo, de todas as coisas que o rodeiam. Efetivamente, a nossa mente não apreende somente as coisas vizinhas, mas também aproxima de si as que estão afastadas (quer quanto ao lugar, quer quanto ao tempo), ergue-se às que estão elevadas, investiga as ocultas, desvela as veladas e esforça-se por perscrutar até as imperscrutáveis, de tal maneira é algo de infinito e de indeterminável. Se fossem concedidos ao homem mil anos de vida, durante os quais aprendesse constantemente qualquer coisa, deduzindo uma coisa de outra, todavia, teria sempre onde receber outras coisas que se lhe apresentassem, a tal ponto a mente do homem é de capacidade inesgotável que, no conhecimento, se apresenta como um abismo.
O nosso pequeno corpo está encerrado num círculo estreito; a nossa voz vai um pouco mais além; a vista apenas chega à cúpula celeste; mas à nossa mente não pode fixar-se um limite, nem no céu nem fora do céu: tanto se eleva acima dos céus dos céus, como desce abaixo do abismo do abismo; e mesmo que estes espaços fossem milhões de vezes mais vastos do que são, ela aí penetraria, todavia, com incrível rapidez. E havemos então de negar que todas as coisas lhe são acessíveis, que ela é capaz de tudo?
2. Resumo do universo.
5. O homem é chamado pelos filósofos , resumo do universo, compreendendo, de modo obscuro, todas as coisas que se vêem por toda a parte amplamente espalhadas pelo universo (macro-cosmos). Que assim é, demonstrar-se-á noutro lugar [5]. Em conseqüência disso, a mente do homem que entra no mundo compara-se com muita razão a uma semente ou a um caroço, no qual, embora não exista ainda em ato a figura da erva ou da árvore, todavia, nele existe já de fato a erva ou a planta, como se torna evidente quando a semente, metida debaixo da terra, lança para baixo as raízes e para cima os rebentos, os quais, pouco depois, por uma força ingênita, se alongam em ramos e em ramagens, se cobrem de folhas e se adornam de flores e de frutos.
N.B.
Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior, mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza. Por isso, aceitamos que Pitágoras costumava dizer que era tão natural ao homem saber tudo que, se um menino de sete anos fosse prudentemente interrogado acerca de todas as questões de toda a filosofia, com certeza que poderia responder a todas, precisamente porque a luz da razão é a forma e a norma suficiente de todas as coisas. Simplesmente agora, após a queda, que o obscurece e confunde, é incapaz de se libertar pelos seus próprios meios; e aqueles que deveriam ajudá-lo não contribuem senão para aumentar o embaraço em que se encontra.
3. Dotado de sentidos
6. Além disso, à alma racional que habita em nós, foram acrescentados órgãos e como que emissários e observadores, com a ajuda dos quais, ou seja, da vista, do ouvido, do olfato, do gosto e do tato, ela procura chegar a tudo aquilo que se encontra fora dela, de tal maneira que, de todas as coisas criadas, nada pode permanecer-lhe escondido. Uma vez que, portanto, no mundo visível, nada há que se não possa ver, ou ouvir, ou apalpar, e, por isso, que se não possa saber o que é e de que natureza é, daí se segue que nada existe no mundo que o homem, dotado de sentidos e de razão, não consiga apreender.
4. Estimulado pelo desejo de saber.
7. Está implantado também no homem o desejo de saber; e não apenas a aceitação resignada, mas até o apetite do trabalho [6]. Surge logo na primeira idade infantil e acompanha-nos durante toda a vida. Com efeito, quem não experimenta a impaciência de ouvir, de ver ou de apalpar sempre algo de novo? Quem não sente prazer em comparecer todos os dias em qualquer lugar, ou em conversar com alguém, em perguntar qualquer coisa? Em resumo, eis o que se passa: os olhos, os ouvidos, o tato e também a mente, procurando sempre o seu alimento, lançam-se sempre para fora de si mesmos, nada havendo, para uma natureza viva, tão intolerável como o ócio e o torpor. E uma vez que até os idiotas admiram os homens doutos, que significa isto senão que também os idiotas experimentam pelo saber os atrativos de um desejo natural, nos quais eles próprios gostariam de participar, se achassem que isso era possível?; mas porque vêem que isso não é possível, suspiram e olham com reverência aqueles que vêem de inteligência mais elevada.
De onde resulta que muitos, tomando-se a si mesmos por guia, conseguem penetrar no conhecimento das coisas.
8. Os exemplos dos autodidatas mostram, de maneira evidente, que o homem, conduzido pela natureza, pode aprender todas as coisas. Com efeito, alguns foram mais adiante que os seus próprios mestres, ou (como diz S. Bernardo) [7], ensinados pelos carvalhos e pelas faias (ou seja, passeando e meditando nas florestas) fizeram mais progressos que outros, instruídos na escola de diligentes professores. Acaso não nos mostra isto que, dentro do homem, estão, de fato, todas as coisas, isto é, o facho e o candieiro, o azeite e a torcida, e tudo o necessário? Basta-lhe saber riscar o fósforo, fazer tomar fogo à acendalha, e acender as luzes para que veja, tanto em si mesmo como no vasto mundo (observando como todas as coisas foram ordenadas com número, medida e peso [8]), os maravilhosos tesouros da sabedoria de Deus, num espetáculo cheio de beleza. Se, porém, a sua luz interior não está acesa, mas apenas se faz girar do exterior, à volta dele, as lâmpadas das opiniões alheias, não pode acontecer diversamente do que acontece; é como se se fizesse girar archotes à volta de uma prisão obscura e fechada, dos quais entrariam pelos respiradouros somente alguns raios, mas não a plena luz. É precisamente como disse Sêneca: «As sementes de todas as artes estão colocadas dentro de nós, e Deus, nosso mestre, de uma maneira oculta, produz os gênios» [9].
A nossa mente é comparada:
1. à terra;
2. a um jardim;
3. a uma tábua rasa.
9. O mesmo nos ensinam as coisas a que se compara a nossa mente. Com efeito, a terra (à qual, muitas vezes, a Sagrada Escritura compara o nosso coração) [10] não recebe acaso sementes de toda a espécie? E acaso um só e o mesmo jardim não permite que nele se plantem ervas, flores e plantas aromáticas de toda a espécie? Com certeza, se ao jardineiro não falta prudência e zelo. E quanto maior for a variedade, tanto mais belo será o espetáculo para os olhos, tanto mais suave é o prazer para o nariz e tanto mais forte é o conforto para o coração.
Aristóteles comparou a alma humana a uma tábua rasa, onde nada está escrito e onde se pode escrever tudo [11]. Portanto, da mesma maneira que, numa tábua, onde não há nada, o escritor pode escrever, e o pintor pintar aquilo que quer, desde que saiba da sua arte, assim também na mente humana, com a mesma facilidade, quem não ignora a arte de ensinar pode gravar a efígie de todas as coisas. E se isto não acontece, com toda a certeza que não é por culpa da tábua (exceto, uma ou outra vez, quando ela é demasiado rugosa), mas por ignorância do escrivão ou do pintor. Há, porém, uma diferença: na tábua, não é possível traçar linhas senão até ao limite em que as margens o permitem, ao passo que, na mente, por mais que se escreva ou esculpa, nunca se encontra um sinal que indique o termo, pois (como atrás se observou), ela não tem termo.
4. à cera, onde podem imprimir-se infinitos selos.
10. Compara-se também, com razão, o nosso cérebro, oficina dos pensamentos, à cera, onde, ou se imprime um selo, ou de que se fazem estatuetas. Com efeito, da mesma maneira que a cera, adaptando-se a receber qualquer forma, se submete como se quer a tomar e a mudar de figura, assim também o cérebro, prestando-se a receber as imagens de todas as coisas, recebe em si tudo o que o universo contém. Com este exemplo, mostra-se, ao mesmo tempo, de uma maneira elegante, o que é o nosso pensamento e o que é a nossa ciência. Tudo o que me impressiona a vista, o ouvido, o olfato, o gosto e o tato é para mim como um selo, pelo qual a imagem de uma coisa se imprime no cérebro; e nele o imprime de tal maneira que, mesmo que a coisa se afaste dos olhos, dos ouvidos, do nariz e das mãos, permanece sempre a sua imagem; e não é possível que ela não permaneça, a não ser quando uma atenção negligente formou uma impressão débil. Por exemplo: se fixo um homem ou lhe falo; se, viajando, contemplo uma montanha, um rio, um campo, uma floresta, uma cidade, etc.; se, por vezes, ouço trovões, música e discursos; se leio atentamente algumas linhas num livro, etc.; todas estas coisas se imprimem no meu cérebro, de tal maneira que, todas as vezes que a sua recordação se me renova, é o mesmo que se me estivessem diante dos olhos, me ressoassem aos ouvidos e as saboreasse ou apalpasse neste momento. E embora um cérebro, ou receba estas impressões de modo mais distinto, ou as represente com maior clareza, ou as retenha com maior fidelidade que outro, no entanto, cada um deles as recebe, representa e retém, de qualquer maneira.
A capacidade da nossa mente é um milagre de Deus.
11. A este propósito, devemos admirar o espelho da sabedoria de Deus, a qual providenciou de modo que a massa do cérebro, que não é grande sob aspecto nenhum, fosse capaz de receber milhares e milhões de imagens. Com efeito, tudo aquilo que cada um de nós (principalmente as pessoas instruídas), durante tantos anos, viu, ouviu, saboreou, leu e adquiriu com a experiência e com o raciocínio, e de que, segundo as suas forças, se pode recordar, é evidente que tudo isso se conserva ordenado no cérebro, ou seja, as imagens das coisas uma vez vistas, ouvidas, lidas, etc., embora existam por milhões e se multipliquem até ao infinito, com o fato de ver, de ouvir e de ler, quase cada dia, qualquer coisa de novo, todavia, estão contidas no cérebro. Que coisa é esta imperscrutável sabedoria da omnipotência de Deus? Salomão maravilha-se que todos os rios desaguem no oceano e, todavia, não encham o mar (Eclesiastes, 1, 7); e quem não há-de admirar-se com este abismo da nossa memória que tudo recebe e tudo restitui, sem jamais se encher e sem jamais se esvasiar? Assim, a nossa mente é verdadeiramente maior que o mundo, do mesmo modo que o continente é necessariamente maior que o conteúdo.
A nossa mente é um espelho.
12. Finalmente, o olho ou o espelho simboliza muito bem a nossa mente, pois de tudo o que se lhe apresenta, de qualquer forma ou cor que seja, imediatamente mostrará em si uma imagem parecidíssima, a não ser que se lhe apresente um objeto às escuras, ou da parte detrás, ou demasiado longe, por causa da distância maior que o devido, ou que se impeça de receber a impressão, ou esta seja baralhada por um movimento contínuo; nestes casos, temos de confessá-lo, não se obtém êxito. Falo, porém, daquilo que costuma acontecer naturalmente, quando há luz e o objeto é apresentado como convém. Da mesma maneira que, portanto, não é necessário forçar os olhos a abrirem-se e a fixarem os objetos, porque (tal como aquele que naturalmente tem sede de luz) eles experimentam prazer em olhar espontaneamente, e são capazes de olhar todas as coisas (desde que os não perturbem, apresentando-lhes ao mesmo tempo demasiados objetos) e nunca podem saciar-se de olhar; assim também a nossa mente é sequiosa das coisas, está sempre atenta, toma, ou melhor, agarra todas as coisas, sem nunca se cansar, desde que não seja ofuscada com uma multidão de objetos e que, com a devida ordem, se lhe dê a observar uma coisa após outra.
II. No homem, a raiz da honestidade é a harmonia.
13. Os próprios pagãos viram que é natural ao homem a harmonia dos costumes, embora, ignorando outra luz divinamente acrescentada e o guia mais seguro que nos foi dado para chegar à vida eterna, temham considerado (tentativa vã) aquelas centelhas, verdadeiros faróis. Com efeito, assim fala Cícero: «Nas nossas faculdades espirituais estão inatos os gérmens da virtude, os quais, se pudessem desenvolver-se e crescer, seriam suficientes, por natureza, para nos conduzirem à beatitude (isto é exagerado!). Porém, apenas somos dados à luz e começamos a ser educados, rebolamo-nos continuamente em toda a espécie de imundícies, de tal maneira que parece que, juntamente com o leite da ama, bebemos os erros» (Tusculanae, III) [12]. Que é verdadeiro que certos gérmens de virtude nascem juntamente com o homem, infere-se destes dois argumentos: primeiro, todo o homem sente prazer com a harmonia; segundo, ele próprio não é senão harmonia, interior e exteriormente.
1. Com a qual se deleita em toda a parte: em todas as coisas visíveis,
14. Que o homem se deleita com a harmonia e procura ardentemente chegar a ela, é evidente. Efetivamente, a quem se não deleitaria ao ver um homem formoso, um cavalo elegante, uma estátua bela e uma pintura linda? De onde nasce esse prazer senão do fato de que a perfeita proporção das partes e das cores produz o agrado? Essa proporção é o prazer mais natural para os olhos.
nas coisas audíveis,
Pergunto igualmente: a quem não agrada a música? E porquê? Sem dúvida porque a harmonia das vozes produz um som agradável.
nas coisas que se saboreiam,
A quem não agradam os alimentos bem temperados? Sem dúvida porque a temperatura dos sabores deleita agradavelmente o paladar.
nas coisas palpáveis,
Cada um goza com um calor bem proporcionado, com uma frescura bem repartida, com uma posição justa e um movimento equilibrado dos membros. Porquê? Precisamente porque todas as coisas temperadas são amigas e salutares para a natureza e todas as coisas desmesuradas são suas inimigas e prejudiciais.
e até nas próprias virtudes.
Se nós amamos até as virtudes uns nos outros (de fato, mesmo quem é privado de virtude admira as virtudes dos outros, mesmo que os não imite, uma vez que considera impossível vencer os seus maus hábitos), porque é que, portanto, cada um não há-de amar a virtude em si mesmo? Cegos de nós, se não reconhecemos que estão em nós as raízes de toda a harmonia!
2. A qual se encontra também no homem: tanto relativamente ao corpo
15. Mas também o próprio homem não é senão harmonia, tanto relativamente ao corpo, como relativamente à alma. Com efeito, assim como o grande mundo é parecido com um enorme relógio, de tal modo fabricado segundo as regras da arte, com muitíssimas rodas e maquinismos, que para produzir movimentos contínuos e perfeitamente ordenados, uma parte os comunica à outra, através de todo o relógio, assim também o homem.
Com efeito, quanto ao corpo, construído com arte admirável, em primeiro lugar está o coração, que é móvel, fonte de vida e de atividade; dele os outros membros recebem o movimento e a medida do movimento. Mas o peso, ou seja, a verdadeira força motriz, é o cérebro, o qual, servindo-se dos nervos, como de cordas, faz andar as outras rodas (os membros) para diante e para trás. Na verdade, a variedade das operações interiores e exteriores corresponde à exata e perfeita correspondência dos movimentos do relógio.
como no que diz respeito à alma
16. Assim, nos movimentos da alma, a principal roda é a vontade; os pesos que a fazem mover são os desejos e as paixões que inclinam a vontade para esta ou para aquela parte. A válvula, que abre e fecha o movimento, é a razão, a qual mede e determina que coisa, onde e até que ponto se deve abraçar ou afastar. Os outros movimentos da alma são como que as rodas menores, que seguem a principal. Por isso, se aos desejos e às paixões se não atribui um peso demasiado grande, e a válvula, ou seja, a razão, abre e fecha convenientemente, é impossível não se seguir uma ordem e um acordo perfeito de virtudes, isto é, um perfeito equilíbrio das ações e das paixões.
A harmonia perturbada pode remediar-se.
17. Eis, portanto, que realmente o homem em si mesmo não é senão harmonia. Por isso, assim como acerca de um relógio ou de um instrumento musical, feito pelas mãos de um artífice perito, se acaso se estraga ou se torna desafinado, não dizemos imediatamente que já não serve para nada (pode, com efeito, consertar-se e tornar a afinar-se), assim também acerca do homem, embora corrompido pelo pecado, deve afirmar-se que, com determinados meios, é possível saná-lo, por graça da virtude de Deus.
III. Que no homem estão as raízes da religião argumenta-se:
1. pela natureza da sua imagem,
18. Que as raízes da religião estão no homem, por natureza, demonstra-se pelo fato de que ele é a imagem de Deus. Com efeito, a imagem implica semelhança: e que todo o semelhante se congratula com o seu semelhante é lei imutável de todas as coisas (Eclesiástico, 13, 19). O homem, portanto, uma vez que nada tem de igual a si, a não ser Aquele à imagem do qual foi feito, é natural que não seja conduzido pelos seus desejos senão para a fonte de onde derivou, contanto que a conheça com suficiente clareza.
2. pela reverência inata em todos para com a divindade,
19. Isto é evidente também pelo exemplo dos pagãos, os quais, não sendo ajudados por nenhuma palavra de Deus, apenas pelo oculto instinto da natureza chegaram, não só a conhecer Deus, mas também a venerá-lo e a desejá-lo, embora errassem quanto ao número dos deuses e à forma do culto. «Todos os homens têm a noção dos deuses e todos atribuem o lugar supremo a qualquer potência divina», escreve Aristóteles no livro I Do Céu, cap. 3 [13]. E Sêneca: «Em primeiro lugar, o culto divino consiste em acreditar nos deuses; depois, em atribuir-lhes a majestade devida e em atribuir-lhes a bondade, sem a qual não há qualquer majestade; em saber que são eles que governam o mundo, que regulam todas as suas coisas e que providenciam pela conservação do gênero humano» (Carta 96) [14]. Acaso esta opinião difere muito da do Apóstolo? «Porquanto é necessário que o que se aproxima de Deus acredite que Ele existe e que é remunerador dos que O buscam» (Hebreus, II, 6).
3. pelo desejo natural do Sumo Bem (que é Deus),
20. Platão diz: «Deus é o sumo bem, superior a toda a substância e a toda a natureza, o qual é naturalmente desejado por todas as criaturas» (Timeu) [15]. E isto (que Deus é o sumo bem, naturalmente desejado por todas as criaturas) é de tal modo verdadeiro que Cícero diz: «A primeira mestra da piedade é a natureza» (Da natureza dos deuses, I) [16]. E isto “porque (como escreve Lactâncio, no livro 4, cap. 28) fomos gerados com a condição de prestarmos a Deus, que nos criou, as justas e devidas homenagens e de apenas reconhecermos a Ele como Deus e de O seguirmos. Com este vínculo da piedade somos atados e ligados a Deus; de onde a própria religião recebe o seu nome» [17].
que nem sequer pela queda do gênero humano foi extinto.
21. Deve, todavia, confessar-se que este desejo natural de Deus, como sumo bem, foi corrompido com a queda do pecado e degenerou numa espécie de vertigem, que não é capaz de regressar à retidão com as suas próprias forças; naqueles, porém, que Deus de novo ilumina com o seu Verbo e com o seu Espírito, ele volta a aguçar-se de tal modo que David, voltado para Deus, clama: «Quem tenho eu, lá no céu, exceto tu? E, fora de ti, nada me deleita sobre a terra. Desfalece a minha carne e o meu coração, e o rochedo do meu coração e a minha herança é Deus para sempre» (Salmo 72, 24 e 25).
É, portanto, impiamente que se procuram pretextos contra o exercício da piedade.
22. Que ninguém, portanto, enquanto se procuram remédios para corrupção, nos oponha a corrupção, porque Deus, por obra do seu Espírito e com a intervenção de meios adequados, prepara-se para a fazer desaparecer. De fato, assim como a Nabucodonosor, quando foi privado do sentido humano e provido de um coração bestial, lhe foi deixada, todavia, a esperança de poder readquirir a mente humana, e até mesmo também a dignidade real, logo que reconhecesse que o poder vem do céu (Daniel, 4, 23); assim também, a nós, plantas excluídas do paraíso de Deus, foram deixadas as raízes, as quais, sobrevindo a chuva e o sol da graça de Deus, podem de novo germinar.
Porventura o nosso Deus, logo a seguir à queda e à proclamação da nossa ruína (a pena de morte) não plantou imediatamente (com a promessa da semente bendita), de novo, nos nossos corações, rebentos de nova graça? Acaso não nos enviou o seu Filho, pelo qual nos seriam restituídos os bens perdidos?
E não deve sublevar-se o velho Adão contra o novo.
23. É coisa torpe e nefanda e sinal evidente de ingratidão estar sempre a apelar para a corrupção e dissimular a redenção. Correr atrás daquilo que o velho Adão em nós deixou e não procurar aquilo que Cristo, novo Adão, nos proporcionou! Muito acertadamente, o Apóstolo, em seu nome e no de todos os regenerados, diz: «Tudo posso naquele que me conforta, Cristo» (Filipenses, 4, 13). Se é possível que um garfo de árvore doméstica, enxertado num salgueiro, num espinheiro ou em qualquer árvore brava, germine e frutifique, porque não há-de acontecer o mesmo se for enxertado bem sobre a própria raiz? Veja-se a argumentação do Apóstolo (Romanos, 11, 24). Além disso, se Deus, de pedras, pode fazer nascer filhos de Abraão (Mateus, 3, 9), porque não há-de despertar os homens, feitos já filhos de Deus desde a criação, adotados de novo por Cristo e regenerados pelo Espírito da graça, para toda a espécie de boas obras?
A graça de Deus não se deve coarctar, mas reconhecer com gratidão.
24. Abstinhamo-nos de coarctar a graça de Deus, pois Ele está pronto a infundi-la em nós liberalíssimamente. Com efeito, se nós, enxertados em Cristo por meio da fé e dados a Ele por meio do Espírito de adoção, se nós, digo, com a nossa geração, não somos aptos para as coisas do Reino de Deus, como é que então Cristo, falando das criancinhas, afirmou que «é delas o reino de Deus»? [18] Ou como é que no-las apresenta como modelo, ordenando a todos que «se convertam e se façam como crianças, se querem entrar no reino dos céus?» (Mateus, 18, 3). Como é que o Apóstolo proclama santos e nega que sejam impuros os filhos dos cristãos (mesmo quando só um deles pertence ao número dos fiéis)? (Coríntios, I, 7, 14). Pelo contrário, até daqueles que já mergulharam na prática de vícios gravíssimos, o Apóstolo ousa afirmar: «E tais éreis alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Espírito do nosso Deus» (Coríntios, I, 6, 11). Precisamente por isto, quando dizemos que os filhos dos cristãos (não a geração do velho Adão, mas a geração regenerada pelo novo Adão, isto é, os filhos de Deus, os irmãos e as irmãs de Cristo) pedem para serem formados e estão aptos a receber as sementes da eternidade, a quem pode parecer que isto seja impossível? A ninguém, pois não procuramos obter frutos de uma oliveira brava, mas ajudamos os rebentos da árvore da vida, novamente plantados, para que produzam frutos.
Conclusão.
25. Fique, portanto, assente que é mais natural e, pela graça do Espírito Santo, mas fácil, que o homem se torne sábio, honesto e santo, do que a perversidade adventícia poder impedir o progresso. Com efeito, qualquer coisa regressa facilmente à sua natureza. E é esta a advertência que nos faz a Escritura: «A sabedoria facilmente se deixa ver por aqueles que a amam; ela corre mesmo atrás de quem a pede, antes de ser conhecida, e por aqueles que a esperam faz-se encontrar, sem fadiga, sentada à sua porta» (Sabedoria, 6, 13 e ss.). E é conhecida a sentença do poeta venusino: Ninguém é tão selvagem que, prestando paciente ouvido à cultura, não possa ser domesticado [19].
ESTA VIDA
NÃO É
SENÃO UMA PREPARAÇÃO
PARA A VIDA ETERNA
Testemunhos desta verdade
1. Que esta vida, uma vez que tende para outra, não é vida (falando com rigor), mas um proêmio da vida verdadeira e que durará para sempre, tornar-se-á evidente, primeiro, pelo testemunho de nós mesmos; segundo, pelo testemunho do mundo; e, finalmente, pelo testemunho da Sagrada Escritura.
1. Pelo testemunho de nós mesmos.
2. Se lançarmos um olhar introspectivo sobre nós mesmos, veremos que todas as coisas da nossa vida procedem de tal modo gradualmente, que a antecedente prepara o caminho para a seguinte. Por exemplo: a nossa primeira vida desenvolve-se nas vísceras maternas. Mas em proveito de quem? Acaso em proveito de si mesma? De modo algum. Trata-se apenas de formar convenientemente um pequenino corpo para servir de habitação e de instrumento à alma, para comodidade e uso da vida seguinte, a qual vivemos à luz do sol. E apenas aquele pequenino corpo está perfeito, somos dados à luz, pois já não há nenhuma razão para que continui naquelas trevas. Do mesmo modo, portanto, esta vida que vivemos à luz do sol não é senão uma preparação para a vida eterna, de tal maneira que não é de admirar que a alma se sirva do corpo para conseguir aquelas coisas que lhe serão úteis para a vida futura. Apenas feitos estes preparativos, emigramos daqui, porque nada mais temos aqui a fazer. É verdade que alguns, antes que tenham feito esses preparativos, são arrebatados, ou antes, lançados no seio da morte, do mesmo modo que, nos casos de aborto, o feto é lançado fora do útero, não para o seio da vida, mas para o seio da morte; em ambos os casos, porém, isso acontece, é certo que com a permissão de Deus, mas contudo, por culpa dos homens.
2. O mundo visível foi criado somente para servir de sementeira, de alimentador e de escola aos homens.
3. Também o mundo visível, de qualquer parte que se olhe, atesta que não foi criado para outro fim senão para servir para a multiplicação, para a alimentação e para a educação do gênero humano.
Com efeito, uma vez que a Deus não aprouve criar os homens todos juntos, no mesmo momento, como fez com os anjos, mas produziu apenas um macho e uma fêmea, dando-lhes, a fim de que, por via de geração, se multiplicassem, as forças necessárias e a sua benção, foi preciso conceder um espaço de tempo necessário para esta sucessiva multiplicação, pelo que foram concedidos alguns milhares de anos. E para que esse tempo não fosse um tempo de confusão, de surdez e de cegueira, fez a extensão dos céus, guarnecidos com o sol, a lua e as estrelas, e ordenou que estes astros, com as suas revoluções, servissem para medir as horas, os dias, os meses e os anos. A seguir, uma vez que o homem seria uma criatura corpórea, com necessidade de um lugar para habitar, de um espaço para respirar e para se mover, de alimento para crescer e de vestidos para se adornar, fez (na parte mais baixa do mundo) um pavimento sólido, a terra: e circundou-a de ar e banhou-a com as águas, e ordenou-lhe que produzisse plantas e animais multiformes, não apenas para satisfazer as necessidades do homem, mas também para seu deleite. E, uma vez que formara o homem à sua imagem, dotado de inteligência, para que também não faltasse à inteligência o seu alimento, derivou de cada uma das criaturas muitas e várias espécies, para que este mundo visível aparecesse como um lucidíssimo espelho da infinita potência, sabedoria e bondade de Deus, na contemplação do qual o homem fosse arrebatado por um sentimento de admiração pelo Criador e impelido a conhecê-lo e movido a amá-lo. Efetivamente, a solidez, a beleza e a doçura do Criador permanece invisível e escondida no abismo da eternidade, mas por toda a parte brilha por meio das coisas visíveis e presta-se a ser apalpada, observada e saboreada. Portanto, este mundo nada mais é que a nossa sementeira, o nosso alimentador e a nossa escola. Deve, por isso, existir um mais além («Plus ultra»), onde, uma vez saídos das aulas desta escola, nos matricularemos na Academia Eterna. Pela razão, portanto, consta que as coisas se passam assim; mas é ainda mais evidente pelas Sagradas Escrituras.
3. O próprio Deus o atesta com as suas palavras.
4. O próprio Deus afirma, pela boca de Oséias, que os céus existem por causa da terra, a terra por causa do trigo, do vinho e do azeite, e tudo isto por causa dos homens (Oseias, 2,22). Tudo, portanto, existe por causa do homem, até o próprio tempo. Com efeito, não será concedida ao mundo uma duração mais longa que a necessária para completar o número dos eleitos (Apocalipse, 6, 11). Apenas este número esteja completo, os céus e a terra desaparecerão e não se encontrará mais lugar para eles (Apocalipse, 20,7), pois surgirá um novo céu e uma nova terra, onde habitará a justiça (Apocalipse, 21,1 e 2; Pedro, II, 3, 18). Finalmente, até os nomes que as Sagradas Escrituras dão a esta vida dão a entender que esta não é senão uma preparação para outra. Com efeito, dão-lhe o nome de via, viagem, porta, espera; e a nós, o nome de peregrinos, forasteiros, inquilinos, aspirantes a uma outra cidadania, a qual será verdadeiramente permanente (Gênesis, 47,9; Salmo 29, 13; Job, 7, 12; Lucas, 12, 36).
A experiência.
5. Todas estas coisas são demonstradas pelos próprios fatos e pela condição de todos os homens, o que é colocado sob os olhos de todos nós. Com efeito, quem de todos os que nasceram, depois que apareceu no mundo, não desapareceu de novo? Precisamente porque somos destinados à eternidade. Porque, portanto, pertencemos à eternidade, é necessário que esta vida seja apenas uma passagem. Por isso Cristo disse: «Estai preparados, porque não sabeis em que hora virá o Filho do homem» (Mateus, 24, 44). E é esta a razão (sabemo-lo também pela Escritura) por que Deus chama deste mundo alguns ainda na primeira idade da vida: chama-os certamente quando os vê preparados como Enoc (Gênesis, 4, 24; Sabedoria, 4, 14). Porque é que, ao contrário, usa de longanimidade para com os maus? Sem dúvida, porque não quer surpreender ninguém não preparado, mas que todos se convertam (Pedro II, 3, 9). Se, todavia, algum continua a abusar da paciência de Deus, este ordena que seja arrebatado pela morte.
Conclusão.
6. Portanto, assim como é certo que a estadia no útero materno é uma preparação para viver no corpo, assim também é certo que a estadia no corpo é uma preparação para aquela vida que será uma continuação da vida presente e durará eternamente. Feliz aquele que sai do útero materno com os membros bem formados! Mil vezes mais feliz aquele que sair desta vida com a alma bem limpa!
Capítulo IV
OS GRAUS
DA PREPARAÇÃO
PARA A ETERNIDADE
SÃO TRÊS:
CONHECER-SE A SI MESMO
(E CONSIGO TODAS AS COISAS),
GOVERNAR-SE
E DIRIGIR-SE PARA DEUS
De onde se adquire o conhecimento dos fins secundários do homem, subordinados ao fim supremo (a eternidade)?
1. É evidente, portanto, que o fim último do homem é a beatitude eterna com Deus. Quais sejam os fim subordinados àquele e conformes a esta vida transitória, torna-se evidente pelas palavras com que Deus manifestou a resolução de criar o homem: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e às aves do céu, e aos animais selváticos, e a toda a terra, e a todos os répteis que se movem sobre a terra» (Gênesis, 1, 26).
São três:
1. que conheça todas as coisas;
2. que seja rei de si mesmo;
3. que seja delícia de Deus.
2. Ora, desta passagem, torna-se evidente que foi colocado entre as criaturas visíveis para que seja:
I. Criatura racional.
II. Criatura senhora das outras criaturas
III. Criatura imagem e delícia do seu Criador
Estas três coisas estão de tal modo ligadas que não pode admitir-se nenhum divórcio entre elas, porque sobre elas se funda a base da vida presente e da futura.
Que significa que é criatura racional?
3. Que é criatura racional quer dizer que observa, dá o nome e se apercebe de todas as coisas, isto é, que pode conhecer e dar um nome a todas as coisas deste mundo e entendê-las, como é evidente (Gênesis, 2, 19). Ou então, segundo a enumeração de Salomão (Sabedoria, 7, 17 e ss.): conhecer a constituição do mundo e a força dos elementos, o princípio e o fim e o meio das estações, as mudanças dos solstícios e a variabilidade do tempo, a duração do ano e a posição das estrelas, a natureza dos animais e a alma dos brutos, as forças dos espíritos e os pensamentos dos homens, as diferenças das plantas e a potência das suas raízes: numa palavra, todas as coisas ocultas ou manifestas, etc. Nisto está compreendido também a ciência dos artífices e a arte da palavra; de tal maneira que (como diz o Eclesiástico) em nenhuma coisa, pequena ou grande, haja algo de desconhecido (Eclesiástico, 5, 18). Somente assim, com efeito, poderá de fato conservar o título de animal racional, isto é, se conhecer os fundamentos de todas as coisas.
Que significa que é senhor das outras criaturas?
4. Que é o senhor das outras criaturas quer dizer que, ordenando tudo para fins legítimos, faz reverter tudo utilmente em seu proveito; quer dizer que, portando-se por toda a parte, no meio das criaturas, como um rei, isto é, grave e santamente (ou seja, adorando apenas o Criador acima de si mesmo; os anjos de Deus, seus companheiros, como a si mesmo, e todas as outras coisas menos que a si mesmo) defende a dignidade que lhe é concedida; que não está sujeito a nenhuma criatura, nem mesmo à própria carne e que aproveita de tudo e de tudo se serve livremente; que não ignora onde, quando, como e até que ponto deve obedecer ao corpo, e onde, quando, como e até que ponto deve servir o próximo. Numa palavra, que pode regular prudentemente os movimentos e as ações, externas e internas, de si mesmo e dos outros.
Que significa que é imagem de Deus?
5. Finalmente, que é imagem de Deus, quer dizer que representa ao vivo a perfeição do seu arquétipo, como diz o próprio Arquétipo: «Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou santo» (Levítico, 19, 2).
Os referidos três atributos reduzem-se:
1. à instrução;
2. à virtude;
3. à piedade.
6. Daqui se segue que os autênticos requisitos do homem são: 1. que tenha conhecimento de todas as coisas; 2. que seja capaz de dominar as coisas e a si mesmo; 3. que se dirija a si e todas as coisas para Deus, fonte de tudo. Estas três coisas, se as quisermos exprimir por três palavras vulgarmente conhecidas, serão:
I. Instrução,
II. Virtude, ou seja, honestidade de costumes,
III. Religião, ou seja, piedade;
entendendo-se por instrução, o conhecimento pleno das coisas, das artes e das línguas; por costumes, não apenas a urbanidade exterior, mas a plena formação interior e exterior dos movimentos da alma; e por religião, a veneração interior, pela qual a alma humana se liga e se prende ao Ser supremo.
Estas três coisas são o essencial do homem nesta vida; todas as outras são acessórias .
7. Nestas três coisas reside toda a excelência do homem, porque só estas são o fundamento da vida presente e da futura; as outras (a saúde, a força, a beleza, o poder, a dignidade, a amizade, o sucesso, a longevidade) não são senão acréscimos e ornamentos externos da vida, se acaso Deus os junta a ela, ou vaidades supérfluas, pesos inúteis e estorvos nocivos, se alguém, desejando-os apaixonadamente, os vai procurar, e, descuradas as coisas mais importantes, deles se ocupa e neles se mergulha.
Ilustra-se isto com o exemplo:
1. do relógio.
8. Ilustro a minha afirmação com exemplos. O relógio (solar ou mecânico) é um instrumento elegante e muito necessário para medir o tempo, cuja substância ou essência é constituída por uma correspondência perfeita de todas as suas partes. Os estojos em que se coloca, as esculturas, as pinturas e os dourados são coisas acessórias que acrescentam qualquer coisa à sua beleza, mas nada à sua bondade. Se alguém quiser um instrumento destes de preferência belo a bom, será escarnecida a sua puerilidade, pois não repara onde está sobretudo a utilidade.
2. do cavalo.
Do mesmo modo, o valor de um cavalo está na sua força junta com a magnanimidade ou agilidade e a prontidão do voltear; a cauda solta ou atada, a crina penteada e ereta, os freios dourados, a gualdrapa com bordados de ouro, e os colares, sejam de que espécie forem, é verdade que acrescentam ornamento, mas, se víssemos alguém medir por estas coisas a excelência do cavalo, chamar-lhe-íamos estúpido.
3. da saúde
Finalmente, o bom estado da nossa saúde depende de uma digestão regular e de uma boa disposição interior. Deitar-se em leitos moles, trazer vestidos luxuosos e comer alimentos saborosos, não só não favorece a saúde, mas até a prejudica; por isso, quem procura coisas deleitáveis de preferência a coisas sãs, é um insensato. E é um insensato infinitamente mais prejudicial aquele que, desejando ser homem, se preocupa mais com os ornamentos que com a essência do homem. Por isso, o Sábio chama ímpio e estulto «a quem julga que a nossa vida é coisa de burla e um mercado lucrativo» e diz e repete que «a aprovação e a benção de Deus está muito longe de semelhante homem» (Sabedoria, 15, 12 e 19).
Conclusão.
9. Fique, portanto, assente isto: quanto maior é a atividade que, nesta vida se despende por amor da instrução, da virtude e da piedade, tanto mais nos aproximamos do fim último. Por isso, sejam estas três coisas a obra essencial da nossa vida ; tudo o resto é acessório, empecilho, aparência enganosa.
Capítulo V
AS SEMENTES
DAQUELAS TRÊS COISAS
(DA INSTRUÇÃO, DA MORAL E DA RELIGIÃO)
SÃO POSTAS
DENTRO DE NÓS
PELA NATUREZA
A primitiva natureza do homem era boa: a ela (libertando-nos da corrupção) devemos regressar.
1. Neste lugar, por natureza, entendemos, não a corrupção que, depois da queda, a todos atingiu (e por causa da qual somos chamados, por natureza, filhos da ira [1], incapazes, por nós próprios, de pensar seja o que for de bom), mas o nosso estado primitivo e fundamental, ao qual devemos regressar como nosso princípio. Neste sentido, Luís de Vives disse: «Que outra coisa é o cristão senão o homem regressado à sua natureza e restituído, por assim dizer, à sua origem, de onde o demônio o havia afastado?» (Da Concórdia e da Discórdia, livro I) [2]. Neste sentido também pode tomar-se aquilo que Sêneca escreveu: «A sabedoria está em regressar à natureza e em voltar àquele lugar de onde o erro público (ou seja, o erro cometido pelo gênero humano através dos primeiros pais) [3] nos expulsou». E diz ainda: «O homem não é bom, mas, lembrando-se da sua origem, transforma-se em bom, para que tenda a igualar Deus. Desonestamente, ninguém consegue subir ao lugar de onde descera» (Carta 93) [4].
A força proveniente da providência eterna impele para o estado primitivo.
2. Entendemos também pela palavra natureza a providência universal de Deus, ou seja, o influxo incessante da bondade divina para operar tudo em todos, ou seja, em cada criatura aquilo para que a destinou. Na verdade, o objetivo da sabedoria divina foi nada fazer em vão, isto é, nem sem qualquer finalidade, nem sem os meios adequados para conseguir esse fim. Por conseqüência, tudo o que existe, existe para qualquer fim, e para que o possa atingir foi dotado dos necessários orgãos e auxílios; mais ainda, foi dotado também de uma verdadeira tendência, a fim de que nunca seja impelido para o seu fim contra a sua vontade e com relutância, mas antes com prontidão e com prazer pelo instinto da própria natureza, de modo que, se disso é mantido afastado, advenha o sofrimento e a morte. É certo, por isso, que também o homem foi feito, por natureza, apto para a inteligência das coisas, para a harmonia dos costumes e para o amor a Deus sobre todas as coisas (vimos já, com efeito, que foi destinado para estas coisas), e é tão certo que as raízes daquelas três coisas se encontram nele, quanto é certo que a cada planta foram dadas as raízes sob a terra.
A sabedoria colocou no homem raízes eternas.
3. Para que se torne mais evidente o que pretende dizer o Eclesiástico quando proclama que a sabedoria colocou fundamentos eternos nos homens (Eclesiástico, 1, 14), vejamos que fundamentos de Sabedoria, de Virtude e de Religião foram postos em nós, para que nos apercebamos quão maravilhoso organismo de sabedoria é o homem.
I. Tornando-o apto para adquirir conhecimento das coisas. O que é evidente, porque o fez:
1. sua imagem
4. É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então não será uma imagem. Ora, uma vez que, entre os atributos de Deus, se destaca a omnisciência, necessariamente brilhará no homem algo de semelhante a ela. E porque não? Sem dúvida que o homem está no meio das obras de Deus, tendo uma mente lúcida, como um espelho esférico, suspenso na parede de uma sala, o qual recebe a imagem de todas as coisas, digo, de todas as coisas que o rodeiam. Efetivamente, a nossa mente não apreende somente as coisas vizinhas, mas também aproxima de si as que estão afastadas (quer quanto ao lugar, quer quanto ao tempo), ergue-se às que estão elevadas, investiga as ocultas, desvela as veladas e esforça-se por perscrutar até as imperscrutáveis, de tal maneira é algo de infinito e de indeterminável. Se fossem concedidos ao homem mil anos de vida, durante os quais aprendesse constantemente qualquer coisa, deduzindo uma coisa de outra, todavia, teria sempre onde receber outras coisas que se lhe apresentassem, a tal ponto a mente do homem é de capacidade inesgotável que, no conhecimento, se apresenta como um abismo.
O nosso pequeno corpo está encerrado num círculo estreito; a nossa voz vai um pouco mais além; a vista apenas chega à cúpula celeste; mas à nossa mente não pode fixar-se um limite, nem no céu nem fora do céu: tanto se eleva acima dos céus dos céus, como desce abaixo do abismo do abismo; e mesmo que estes espaços fossem milhões de vezes mais vastos do que são, ela aí penetraria, todavia, com incrível rapidez. E havemos então de negar que todas as coisas lhe são acessíveis, que ela é capaz de tudo?
2. Resumo do universo.
5. O homem é chamado pelos filósofos , resumo do universo, compreendendo, de modo obscuro, todas as coisas que se vêem por toda a parte amplamente espalhadas pelo universo (macro-cosmos). Que assim é, demonstrar-se-á noutro lugar [5]. Em conseqüência disso, a mente do homem que entra no mundo compara-se com muita razão a uma semente ou a um caroço, no qual, embora não exista ainda em ato a figura da erva ou da árvore, todavia, nele existe já de fato a erva ou a planta, como se torna evidente quando a semente, metida debaixo da terra, lança para baixo as raízes e para cima os rebentos, os quais, pouco depois, por uma força ingênita, se alongam em ramos e em ramagens, se cobrem de folhas e se adornam de flores e de frutos.
N.B.
Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior, mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza. Por isso, aceitamos que Pitágoras costumava dizer que era tão natural ao homem saber tudo que, se um menino de sete anos fosse prudentemente interrogado acerca de todas as questões de toda a filosofia, com certeza que poderia responder a todas, precisamente porque a luz da razão é a forma e a norma suficiente de todas as coisas. Simplesmente agora, após a queda, que o obscurece e confunde, é incapaz de se libertar pelos seus próprios meios; e aqueles que deveriam ajudá-lo não contribuem senão para aumentar o embaraço em que se encontra.
3. Dotado de sentidos
6. Além disso, à alma racional que habita em nós, foram acrescentados órgãos e como que emissários e observadores, com a ajuda dos quais, ou seja, da vista, do ouvido, do olfato, do gosto e do tato, ela procura chegar a tudo aquilo que se encontra fora dela, de tal maneira que, de todas as coisas criadas, nada pode permanecer-lhe escondido. Uma vez que, portanto, no mundo visível, nada há que se não possa ver, ou ouvir, ou apalpar, e, por isso, que se não possa saber o que é e de que natureza é, daí se segue que nada existe no mundo que o homem, dotado de sentidos e de razão, não consiga apreender.
4. Estimulado pelo desejo de saber.
7. Está implantado também no homem o desejo de saber; e não apenas a aceitação resignada, mas até o apetite do trabalho [6]. Surge logo na primeira idade infantil e acompanha-nos durante toda a vida. Com efeito, quem não experimenta a impaciência de ouvir, de ver ou de apalpar sempre algo de novo? Quem não sente prazer em comparecer todos os dias em qualquer lugar, ou em conversar com alguém, em perguntar qualquer coisa? Em resumo, eis o que se passa: os olhos, os ouvidos, o tato e também a mente, procurando sempre o seu alimento, lançam-se sempre para fora de si mesmos, nada havendo, para uma natureza viva, tão intolerável como o ócio e o torpor. E uma vez que até os idiotas admiram os homens doutos, que significa isto senão que também os idiotas experimentam pelo saber os atrativos de um desejo natural, nos quais eles próprios gostariam de participar, se achassem que isso era possível?; mas porque vêem que isso não é possível, suspiram e olham com reverência aqueles que vêem de inteligência mais elevada.
De onde resulta que muitos, tomando-se a si mesmos por guia, conseguem penetrar no conhecimento das coisas.
8. Os exemplos dos autodidatas mostram, de maneira evidente, que o homem, conduzido pela natureza, pode aprender todas as coisas. Com efeito, alguns foram mais adiante que os seus próprios mestres, ou (como diz S. Bernardo) [7], ensinados pelos carvalhos e pelas faias (ou seja, passeando e meditando nas florestas) fizeram mais progressos que outros, instruídos na escola de diligentes professores. Acaso não nos mostra isto que, dentro do homem, estão, de fato, todas as coisas, isto é, o facho e o candieiro, o azeite e a torcida, e tudo o necessário? Basta-lhe saber riscar o fósforo, fazer tomar fogo à acendalha, e acender as luzes para que veja, tanto em si mesmo como no vasto mundo (observando como todas as coisas foram ordenadas com número, medida e peso [8]), os maravilhosos tesouros da sabedoria de Deus, num espetáculo cheio de beleza. Se, porém, a sua luz interior não está acesa, mas apenas se faz girar do exterior, à volta dele, as lâmpadas das opiniões alheias, não pode acontecer diversamente do que acontece; é como se se fizesse girar archotes à volta de uma prisão obscura e fechada, dos quais entrariam pelos respiradouros somente alguns raios, mas não a plena luz. É precisamente como disse Sêneca: «As sementes de todas as artes estão colocadas dentro de nós, e Deus, nosso mestre, de uma maneira oculta, produz os gênios» [9].
A nossa mente é comparada:
1. à terra;
2. a um jardim;
3. a uma tábua rasa.
9. O mesmo nos ensinam as coisas a que se compara a nossa mente. Com efeito, a terra (à qual, muitas vezes, a Sagrada Escritura compara o nosso coração) [10] não recebe acaso sementes de toda a espécie? E acaso um só e o mesmo jardim não permite que nele se plantem ervas, flores e plantas aromáticas de toda a espécie? Com certeza, se ao jardineiro não falta prudência e zelo. E quanto maior for a variedade, tanto mais belo será o espetáculo para os olhos, tanto mais suave é o prazer para o nariz e tanto mais forte é o conforto para o coração.
Aristóteles comparou a alma humana a uma tábua rasa, onde nada está escrito e onde se pode escrever tudo [11]. Portanto, da mesma maneira que, numa tábua, onde não há nada, o escritor pode escrever, e o pintor pintar aquilo que quer, desde que saiba da sua arte, assim também na mente humana, com a mesma facilidade, quem não ignora a arte de ensinar pode gravar a efígie de todas as coisas. E se isto não acontece, com toda a certeza que não é por culpa da tábua (exceto, uma ou outra vez, quando ela é demasiado rugosa), mas por ignorância do escrivão ou do pintor. Há, porém, uma diferença: na tábua, não é possível traçar linhas senão até ao limite em que as margens o permitem, ao passo que, na mente, por mais que se escreva ou esculpa, nunca se encontra um sinal que indique o termo, pois (como atrás se observou), ela não tem termo.
4. à cera, onde podem imprimir-se infinitos selos.
10. Compara-se também, com razão, o nosso cérebro, oficina dos pensamentos, à cera, onde, ou se imprime um selo, ou de que se fazem estatuetas. Com efeito, da mesma maneira que a cera, adaptando-se a receber qualquer forma, se submete como se quer a tomar e a mudar de figura, assim também o cérebro, prestando-se a receber as imagens de todas as coisas, recebe em si tudo o que o universo contém. Com este exemplo, mostra-se, ao mesmo tempo, de uma maneira elegante, o que é o nosso pensamento e o que é a nossa ciência. Tudo o que me impressiona a vista, o ouvido, o olfato, o gosto e o tato é para mim como um selo, pelo qual a imagem de uma coisa se imprime no cérebro; e nele o imprime de tal maneira que, mesmo que a coisa se afaste dos olhos, dos ouvidos, do nariz e das mãos, permanece sempre a sua imagem; e não é possível que ela não permaneça, a não ser quando uma atenção negligente formou uma impressão débil. Por exemplo: se fixo um homem ou lhe falo; se, viajando, contemplo uma montanha, um rio, um campo, uma floresta, uma cidade, etc.; se, por vezes, ouço trovões, música e discursos; se leio atentamente algumas linhas num livro, etc.; todas estas coisas se imprimem no meu cérebro, de tal maneira que, todas as vezes que a sua recordação se me renova, é o mesmo que se me estivessem diante dos olhos, me ressoassem aos ouvidos e as saboreasse ou apalpasse neste momento. E embora um cérebro, ou receba estas impressões de modo mais distinto, ou as represente com maior clareza, ou as retenha com maior fidelidade que outro, no entanto, cada um deles as recebe, representa e retém, de qualquer maneira.
A capacidade da nossa mente é um milagre de Deus.
11. A este propósito, devemos admirar o espelho da sabedoria de Deus, a qual providenciou de modo que a massa do cérebro, que não é grande sob aspecto nenhum, fosse capaz de receber milhares e milhões de imagens. Com efeito, tudo aquilo que cada um de nós (principalmente as pessoas instruídas), durante tantos anos, viu, ouviu, saboreou, leu e adquiriu com a experiência e com o raciocínio, e de que, segundo as suas forças, se pode recordar, é evidente que tudo isso se conserva ordenado no cérebro, ou seja, as imagens das coisas uma vez vistas, ouvidas, lidas, etc., embora existam por milhões e se multipliquem até ao infinito, com o fato de ver, de ouvir e de ler, quase cada dia, qualquer coisa de novo, todavia, estão contidas no cérebro. Que coisa é esta imperscrutável sabedoria da omnipotência de Deus? Salomão maravilha-se que todos os rios desaguem no oceano e, todavia, não encham o mar (Eclesiastes, 1, 7); e quem não há-de admirar-se com este abismo da nossa memória que tudo recebe e tudo restitui, sem jamais se encher e sem jamais se esvasiar? Assim, a nossa mente é verdadeiramente maior que o mundo, do mesmo modo que o continente é necessariamente maior que o conteúdo.
A nossa mente é um espelho.
12. Finalmente, o olho ou o espelho simboliza muito bem a nossa mente, pois de tudo o que se lhe apresenta, de qualquer forma ou cor que seja, imediatamente mostrará em si uma imagem parecidíssima, a não ser que se lhe apresente um objeto às escuras, ou da parte detrás, ou demasiado longe, por causa da distância maior que o devido, ou que se impeça de receber a impressão, ou esta seja baralhada por um movimento contínuo; nestes casos, temos de confessá-lo, não se obtém êxito. Falo, porém, daquilo que costuma acontecer naturalmente, quando há luz e o objeto é apresentado como convém. Da mesma maneira que, portanto, não é necessário forçar os olhos a abrirem-se e a fixarem os objetos, porque (tal como aquele que naturalmente tem sede de luz) eles experimentam prazer em olhar espontaneamente, e são capazes de olhar todas as coisas (desde que os não perturbem, apresentando-lhes ao mesmo tempo demasiados objetos) e nunca podem saciar-se de olhar; assim também a nossa mente é sequiosa das coisas, está sempre atenta, toma, ou melhor, agarra todas as coisas, sem nunca se cansar, desde que não seja ofuscada com uma multidão de objetos e que, com a devida ordem, se lhe dê a observar uma coisa após outra.
II. No homem, a raiz da honestidade é a harmonia.
13. Os próprios pagãos viram que é natural ao homem a harmonia dos costumes, embora, ignorando outra luz divinamente acrescentada e o guia mais seguro que nos foi dado para chegar à vida eterna, temham considerado (tentativa vã) aquelas centelhas, verdadeiros faróis. Com efeito, assim fala Cícero: «Nas nossas faculdades espirituais estão inatos os gérmens da virtude, os quais, se pudessem desenvolver-se e crescer, seriam suficientes, por natureza, para nos conduzirem à beatitude (isto é exagerado!). Porém, apenas somos dados à luz e começamos a ser educados, rebolamo-nos continuamente em toda a espécie de imundícies, de tal maneira que parece que, juntamente com o leite da ama, bebemos os erros» (Tusculanae, III) [12]. Que é verdadeiro que certos gérmens de virtude nascem juntamente com o homem, infere-se destes dois argumentos: primeiro, todo o homem sente prazer com a harmonia; segundo, ele próprio não é senão harmonia, interior e exteriormente.
1. Com a qual se deleita em toda a parte: em todas as coisas visíveis,
14. Que o homem se deleita com a harmonia e procura ardentemente chegar a ela, é evidente. Efetivamente, a quem se não deleitaria ao ver um homem formoso, um cavalo elegante, uma estátua bela e uma pintura linda? De onde nasce esse prazer senão do fato de que a perfeita proporção das partes e das cores produz o agrado? Essa proporção é o prazer mais natural para os olhos.
nas coisas audíveis,
Pergunto igualmente: a quem não agrada a música? E porquê? Sem dúvida porque a harmonia das vozes produz um som agradável.
nas coisas que se saboreiam,
A quem não agradam os alimentos bem temperados? Sem dúvida porque a temperatura dos sabores deleita agradavelmente o paladar.
nas coisas palpáveis,
Cada um goza com um calor bem proporcionado, com uma frescura bem repartida, com uma posição justa e um movimento equilibrado dos membros. Porquê? Precisamente porque todas as coisas temperadas são amigas e salutares para a natureza e todas as coisas desmesuradas são suas inimigas e prejudiciais.
e até nas próprias virtudes.
Se nós amamos até as virtudes uns nos outros (de fato, mesmo quem é privado de virtude admira as virtudes dos outros, mesmo que os não imite, uma vez que considera impossível vencer os seus maus hábitos), porque é que, portanto, cada um não há-de amar a virtude em si mesmo? Cegos de nós, se não reconhecemos que estão em nós as raízes de toda a harmonia!
2. A qual se encontra também no homem: tanto relativamente ao corpo
15. Mas também o próprio homem não é senão harmonia, tanto relativamente ao corpo, como relativamente à alma. Com efeito, assim como o grande mundo é parecido com um enorme relógio, de tal modo fabricado segundo as regras da arte, com muitíssimas rodas e maquinismos, que para produzir movimentos contínuos e perfeitamente ordenados, uma parte os comunica à outra, através de todo o relógio, assim também o homem.
Com efeito, quanto ao corpo, construído com arte admirável, em primeiro lugar está o coração, que é móvel, fonte de vida e de atividade; dele os outros membros recebem o movimento e a medida do movimento. Mas o peso, ou seja, a verdadeira força motriz, é o cérebro, o qual, servindo-se dos nervos, como de cordas, faz andar as outras rodas (os membros) para diante e para trás. Na verdade, a variedade das operações interiores e exteriores corresponde à exata e perfeita correspondência dos movimentos do relógio.
como no que diz respeito à alma
16. Assim, nos movimentos da alma, a principal roda é a vontade; os pesos que a fazem mover são os desejos e as paixões que inclinam a vontade para esta ou para aquela parte. A válvula, que abre e fecha o movimento, é a razão, a qual mede e determina que coisa, onde e até que ponto se deve abraçar ou afastar. Os outros movimentos da alma são como que as rodas menores, que seguem a principal. Por isso, se aos desejos e às paixões se não atribui um peso demasiado grande, e a válvula, ou seja, a razão, abre e fecha convenientemente, é impossível não se seguir uma ordem e um acordo perfeito de virtudes, isto é, um perfeito equilíbrio das ações e das paixões.
A harmonia perturbada pode remediar-se.
17. Eis, portanto, que realmente o homem em si mesmo não é senão harmonia. Por isso, assim como acerca de um relógio ou de um instrumento musical, feito pelas mãos de um artífice perito, se acaso se estraga ou se torna desafinado, não dizemos imediatamente que já não serve para nada (pode, com efeito, consertar-se e tornar a afinar-se), assim também acerca do homem, embora corrompido pelo pecado, deve afirmar-se que, com determinados meios, é possível saná-lo, por graça da virtude de Deus.
III. Que no homem estão as raízes da religião argumenta-se:
1. pela natureza da sua imagem,
18. Que as raízes da religião estão no homem, por natureza, demonstra-se pelo fato de que ele é a imagem de Deus. Com efeito, a imagem implica semelhança: e que todo o semelhante se congratula com o seu semelhante é lei imutável de todas as coisas (Eclesiástico, 13, 19). O homem, portanto, uma vez que nada tem de igual a si, a não ser Aquele à imagem do qual foi feito, é natural que não seja conduzido pelos seus desejos senão para a fonte de onde derivou, contanto que a conheça com suficiente clareza.
2. pela reverência inata em todos para com a divindade,
19. Isto é evidente também pelo exemplo dos pagãos, os quais, não sendo ajudados por nenhuma palavra de Deus, apenas pelo oculto instinto da natureza chegaram, não só a conhecer Deus, mas também a venerá-lo e a desejá-lo, embora errassem quanto ao número dos deuses e à forma do culto. «Todos os homens têm a noção dos deuses e todos atribuem o lugar supremo a qualquer potência divina», escreve Aristóteles no livro I Do Céu, cap. 3 [13]. E Sêneca: «Em primeiro lugar, o culto divino consiste em acreditar nos deuses; depois, em atribuir-lhes a majestade devida e em atribuir-lhes a bondade, sem a qual não há qualquer majestade; em saber que são eles que governam o mundo, que regulam todas as suas coisas e que providenciam pela conservação do gênero humano» (Carta 96) [14]. Acaso esta opinião difere muito da do Apóstolo? «Porquanto é necessário que o que se aproxima de Deus acredite que Ele existe e que é remunerador dos que O buscam» (Hebreus, II, 6).
3. pelo desejo natural do Sumo Bem (que é Deus),
20. Platão diz: «Deus é o sumo bem, superior a toda a substância e a toda a natureza, o qual é naturalmente desejado por todas as criaturas» (Timeu) [15]. E isto (que Deus é o sumo bem, naturalmente desejado por todas as criaturas) é de tal modo verdadeiro que Cícero diz: «A primeira mestra da piedade é a natureza» (Da natureza dos deuses, I) [16]. E isto “porque (como escreve Lactâncio, no livro 4, cap. 28) fomos gerados com a condição de prestarmos a Deus, que nos criou, as justas e devidas homenagens e de apenas reconhecermos a Ele como Deus e de O seguirmos. Com este vínculo da piedade somos atados e ligados a Deus; de onde a própria religião recebe o seu nome» [17].
que nem sequer pela queda do gênero humano foi extinto.
21. Deve, todavia, confessar-se que este desejo natural de Deus, como sumo bem, foi corrompido com a queda do pecado e degenerou numa espécie de vertigem, que não é capaz de regressar à retidão com as suas próprias forças; naqueles, porém, que Deus de novo ilumina com o seu Verbo e com o seu Espírito, ele volta a aguçar-se de tal modo que David, voltado para Deus, clama: «Quem tenho eu, lá no céu, exceto tu? E, fora de ti, nada me deleita sobre a terra. Desfalece a minha carne e o meu coração, e o rochedo do meu coração e a minha herança é Deus para sempre» (Salmo 72, 24 e 25).
É, portanto, impiamente que se procuram pretextos contra o exercício da piedade.
22. Que ninguém, portanto, enquanto se procuram remédios para corrupção, nos oponha a corrupção, porque Deus, por obra do seu Espírito e com a intervenção de meios adequados, prepara-se para a fazer desaparecer. De fato, assim como a Nabucodonosor, quando foi privado do sentido humano e provido de um coração bestial, lhe foi deixada, todavia, a esperança de poder readquirir a mente humana, e até mesmo também a dignidade real, logo que reconhecesse que o poder vem do céu (Daniel, 4, 23); assim também, a nós, plantas excluídas do paraíso de Deus, foram deixadas as raízes, as quais, sobrevindo a chuva e o sol da graça de Deus, podem de novo germinar.
Porventura o nosso Deus, logo a seguir à queda e à proclamação da nossa ruína (a pena de morte) não plantou imediatamente (com a promessa da semente bendita), de novo, nos nossos corações, rebentos de nova graça? Acaso não nos enviou o seu Filho, pelo qual nos seriam restituídos os bens perdidos?
E não deve sublevar-se o velho Adão contra o novo.
23. É coisa torpe e nefanda e sinal evidente de ingratidão estar sempre a apelar para a corrupção e dissimular a redenção. Correr atrás daquilo que o velho Adão em nós deixou e não procurar aquilo que Cristo, novo Adão, nos proporcionou! Muito acertadamente, o Apóstolo, em seu nome e no de todos os regenerados, diz: «Tudo posso naquele que me conforta, Cristo» (Filipenses, 4, 13). Se é possível que um garfo de árvore doméstica, enxertado num salgueiro, num espinheiro ou em qualquer árvore brava, germine e frutifique, porque não há-de acontecer o mesmo se for enxertado bem sobre a própria raiz? Veja-se a argumentação do Apóstolo (Romanos, 11, 24). Além disso, se Deus, de pedras, pode fazer nascer filhos de Abraão (Mateus, 3, 9), porque não há-de despertar os homens, feitos já filhos de Deus desde a criação, adotados de novo por Cristo e regenerados pelo Espírito da graça, para toda a espécie de boas obras?
A graça de Deus não se deve coarctar, mas reconhecer com gratidão.
24. Abstinhamo-nos de coarctar a graça de Deus, pois Ele está pronto a infundi-la em nós liberalíssimamente. Com efeito, se nós, enxertados em Cristo por meio da fé e dados a Ele por meio do Espírito de adoção, se nós, digo, com a nossa geração, não somos aptos para as coisas do Reino de Deus, como é que então Cristo, falando das criancinhas, afirmou que «é delas o reino de Deus»? [18] Ou como é que no-las apresenta como modelo, ordenando a todos que «se convertam e se façam como crianças, se querem entrar no reino dos céus?» (Mateus, 18, 3). Como é que o Apóstolo proclama santos e nega que sejam impuros os filhos dos cristãos (mesmo quando só um deles pertence ao número dos fiéis)? (Coríntios, I, 7, 14). Pelo contrário, até daqueles que já mergulharam na prática de vícios gravíssimos, o Apóstolo ousa afirmar: «E tais éreis alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Espírito do nosso Deus» (Coríntios, I, 6, 11). Precisamente por isto, quando dizemos que os filhos dos cristãos (não a geração do velho Adão, mas a geração regenerada pelo novo Adão, isto é, os filhos de Deus, os irmãos e as irmãs de Cristo) pedem para serem formados e estão aptos a receber as sementes da eternidade, a quem pode parecer que isto seja impossível? A ninguém, pois não procuramos obter frutos de uma oliveira brava, mas ajudamos os rebentos da árvore da vida, novamente plantados, para que produzam frutos.
Conclusão.
25. Fique, portanto, assente que é mais natural e, pela graça do Espírito Santo, mas fácil, que o homem se torne sábio, honesto e santo, do que a perversidade adventícia poder impedir o progresso. Com efeito, qualquer coisa regressa facilmente à sua natureza. E é esta a advertência que nos faz a Escritura: «A sabedoria facilmente se deixa ver por aqueles que a amam; ela corre mesmo atrás de quem a pede, antes de ser conhecida, e por aqueles que a esperam faz-se encontrar, sem fadiga, sentada à sua porta» (Sabedoria, 6, 13 e ss.). E é conhecida a sentença do poeta venusino: Ninguém é tão selvagem que, prestando paciente ouvido à cultura, não possa ser domesticado [19].
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